sexta-feira, 23 de agosto de 2013


      SÍLVIA         


      Conto de Cecilia Prada

A primeira coisa que me atingiu foi o cheiro de mato doce, mato de manhã, lavanda de loja de perfumes naturais, cheiro de suavidade maliciosa, pensei. E que me excitou logo.
        Olhei-a: verde. Sim, o vestido só podia ser verde, pensei, e a pele aquela cor de maçã amadurecendo. Ou cor de casca de romã. A minissaia verde de babado e as pernas tensas se oferecendo. E aquele jeito esquivo de olhar, como quem zomba. Um jeito que me atingia de cheio, junto com o perfume de manhã no mato e com o meneio das cadeiras, do tronco leve e flexível. Oi – ela me disse. E de repente, no saguão onde trezentas pessoas se comprimiam tentando alcançar o bufê, só ela existia, me chamando.
       Fiquei como um bobo, como menino de dez anos, olhando para ela, com um repuxão forte no sexo.
        – Oi, respondi. Eu me chamo João Henrique. E você?
        – Sílvia.
       Alguém a empurrou e o seu braço de penugem leve castanho-dourada tocou no meu e eu já era, desde aquele momento, uno e tenso num desejo que subia em mim com garras. Esqueci o que estava fazendo ali, só existia ela, Sílvia, o tronco verde flexível, a cor de fruta que amadurece, o cheiro de folhas pisadas. E minhas mãos, senti – agarrando forte o copo de uísque –, se ficassem livres teriam fúrias que só se apagariam quando conseguisse cravá-las no flexível tronco nu, por baixo da pelagem daquele vestido verde.
      – Vamos sair daqui?
      Ela concordou.
      – Que tal um lugar mais sossegado?
       Evidente que era um clichê. Me senti totalmente ridículo. Ela era uma deusa, eu sabia, e que linguagem empregar com deusas? ela, Sílvia, com seu cheiro de folhas/flores amassadas, ela toda seiva e convite e eu, um publicitário engravatado, de trinta e dois anos, casado e com dois filhos. Esperei que a deusa risse com desprezo do meu clichê. Mas ela estava parada como se não tivesse ouvido nada. Ou como se ouvisse outras coisas. Outras vozes. E algo de tão arisco havia no seu jeito de menina-flor, que eu, no meu desejo, temia vê-la desaparecer, ela, Sílvia, a visão verde-úmida, verde musgo, verde-selva.
      –Tem de ser num lugar muito alto. E muito quieto.
      – Sim, disse eu perdido, sem poder desgrudar dos olhos oblíquos zombadores, também eles, parecia, de uma tonalidade verde cambiante, acastanhados, dourados, que era como uma cor pela primeira vez reparada, cor-revelação – como no mato, a gente olha e vê todos os tons de todos os verdes, de todos os verdes diferentemente verdes.
      Perdido, pensei. Porque já sabia que aquela frase era a primeira de uma série de ordens, instruções para decifrar o enigma Sílvia e que o primeiro signo, alto e quieto, seria seguido de outros e que eu cego me lançando... Uma coisa assim de ameaça. De risco. De medo.
      Tomei-lhe o braço e atravessei a rua, lembrando do bar-terraço no trigésimo andar. Era como uma história antiga: a princesa e suas tarefas.
     Ofereci-lhe a mesa mais próxima do parapeito, num gesto de quem era dono da cidade. Aos teus pés, diva – enquanto ela pedia um coquetel de frutas. E eu, meu quarto uísque da noite. No primeiro gole pensei é o efeito da bebida. Porque agora eu sentia com uma viveza que me deixava louco o cheiro das frutas do seu coquetel, mas o cheiro de cada fruta em separado, ananás, banana, laranja, manga, sapoti, papaia, jambo... Jambo? Não havia jambo em São Paulo, o pensamento me ocorria, me recorria, como num sonho, como uma dessas frases-advertência dos sonhos, mas eu – e comecei a rir – eu sentia o cheiro de cada fruta, o cheiro do jambo também, e do caju, e da pitanga, e do pequi, e da mangaba, e do açaí, os diversos cheiros esmagados, como o das folhas do seu perfume de loja de produtos naturais, tudo se somando, e me obcecando – e tudo o que eu sabia, tudo o que eu conseguia saber naquele momento era que queria apagar minha febre minha fome minha sede contra aquele tronco nu e flexível de pelagem verde, apagar-me, possuindo-o.
       Afastei o uísque, desconfiado. Enquanto ela, tranqüila, tão fria e distante da minha febre, com gestos de menina eterna sugava o coquetel de frutas, com um canudinho plástico. O tempo regulamentar – pensei, medindo a duração dos momentos rituais de uma aproximação bem educada, civilizada, bem ritmada, tentando uma conversa na qual eu deveria mostrar-me despreocupado, alegre, engraçado, bom companheiro, amigo, etc. – todas essas coisas que eu não era nem queria ser, dela. Ou de mulher alguma, na verdade. Para depois, só depois, chegar à única coisa que me interessava, a aproximação física, a mão primeiro, o braço depois, aquele infalível por que você não chega mais perto? O beijo. O convite. A cama, enfim. Se tivesse sorte.
       Foi naquele momento que percebi o que havia de diferente naquela tensão de espera, naquela particular noite, naquela particular mulher – eu só conseguia imaginar-  me possuindo Sílvia numa fúria violenta, de pé contra ela, num esmagamento, só assim, numa fusão... E senti medo. Medo, eu, publicitário, engravatado, trinta e dois anos, casado e com dois filhos. Como se ela, aquela doce moça de fragrâncias naturais e vestido verde, a moça de pele de casca de romã, a moça que sorvia um coquetel de frutas com um canudinho, fosse me devorar. Como se no momento daquela posse eu pudesse me ver desaparecendo dentro do seu corpo e...
      Não devia ter bebido tanto, pensei, aborrecido.
      – João Henrique.
Ela disse meu nome de leve e o som era uma pontuação no silêncio. Porque evidentemente naquele momento, naquela noite, eu não estava conseguindo cumprir a etapa “conversa” do ritual de aproximação. Ela percorria a minha insegurança. A minha angústia. Uma angústia que me excitava ainda mais, como se tudo me fosse novo e desconhecido. Reparei também que o final da tarde estava tranqüilo demais, que se podia ver uma estrela no céu transparente, uma estrelinha precoce piscando – o que era impossível numa cidade como São Paulo, pensei. Como há pouco pensara que era impossível reconhecer o cheiro do jambo no seu coquetel. E o silêncio. Um silêncio demasiado, impossível ele também, naquela hora do ruche, mesmo lá em cima no trigésimo andar. Ao menos as buzinas... Ao menos as buzinas.
       Mas a princesa, quando nos levantamos da mesa e maquinalmente nos olhamos num e agora?, a princesa já me dava a segunda ordem:
      – Tem que ser muito escuro. E muito longe.
      ...e era um desafio, uma vez mais pensei, me sentindo como um garoto que tinha de enfrentar dragões e piratas, e esse desafio era um estímulo, porque agora eu tinha a confirmação: havia algo, sim, naquela mulher-menina infinitamente antiga, alguma coisa que não poderia de forma alguma combinar com motéis e lençóis.
      (...mas quando descíamos no elevador havia uma parte de mim que queria dizer isso mesmo, “um bom motel e lençóis”. Uma parte tola, banal, comodista, de mim. Banal como a minha gravata, o meu terno de tropical. A minha profissão – suspirei).
     ...e a outra parte minha, a que vinha de longe e me espiava de um canto, sentia de uma forma muito aguda a estranheza clara de todos nossos ritmados movimentos. Naquela noite.
       A bebida, a bebida, eu repetia num pasmo, talvez tenham misturado alguma coisa, e enquanto isso abria a porta do Jaguar, para Sílvia subir. Enquanto nos afastávamos da cidade numa corrida tão louca quanto permitia a frustração sistemática dos sinais de trânsito, nem eu nem ela falávamos. Eu só sentia a pulsão do sexo sob o tropical, cada vez eu mais obcecado pelo flexível junco-tronco-flor ao meu lado, sabendo que na hora da posse minhas unhas iam dilacerar sua pele de romã. Essa pulsão, essa fúria, era comum aos dois. Eu sentia isso no seu silêncio. Estranhamente não houvera entre nós a banalidade do beijo, do abraço desajeitado, da mão sob o vestido, nada. Era uma corrida só e frenética, para um objetivo final.
       Quando chegamos à mata da Cantareira a noite já chegara também, devagarinho, com volúpia e delícia demorada de noite de verão, uma cumplicidade a sua escuridão que espantava para muito longe um último raio encarnado do poente.
       – Aqui, me disse a princesa.
     Eu refrei o esbravejante Jaguar, estacando-o.
     Quando desceu, a saia verde de babados rodopiou, E com os cabelos agora desatados ela correu para uma pequena elevação de terra e ficou assim um momento e havia um vento leve e o seu rosto de olhos fechados ainda era visível naquele último clarão dourado, ela toda verde castanha dourada, ela e seu cheiro de mato aguçado e dominante e que me deixava louco e eu aos tropeços corri para segurá-la mas ela mais ágil se esquivou, agora com um riso de mofa. E tirando as sandálias começou a correr descalça e depois sentiu as meias como se estivessem incomodando a sua corrida e naquele breve momento em que levantou a saia para tirar rápida a meia-calça eu a alcancei e...
       Mas não a alcancei porque ela já fugia rindo, rindo, os cabelos soltos muito longos e loucos e ela, louca, que se perdia entre os troncos, afastava os galhos soltos, livrava-se dos espinhos, corria, corria e eu atrás, eu ainda de gravata e terno, e nascia uma fúria em mim contra minha roupa, meu impedimento, eu sentia, eu queria arrancar tudo e comecei pelo mocassim de cromo alemão que chutei para longe embora ainda registrasse que era de cromo alemão, como se naquele momento último houvesse ainda um resto, um resto só de valor monetário em mim, mas o deseja da liberdade, de Sílvia, prevalecia, e arranquei a gravata, o paletó, a camisa, e ofegante corria, me perdia confuso mas ela estava no seu elemento e eu, eu me embaraçava nos galhos, tropeçava nas pedras, os espinhos me rasgavam, eu ridículo, eu só, eu homem da cidade, e a raiva me cobria de suor e essa raiva aumentava o desejo, eu palpitava com a noite com as árvores com ela, Sílvia, eu a agarrava enfim, eu lhe rasgava o vestido verde eu lhe enfiava as unhas na carne clara eu a encostava contra a aspereza de um tronco, eu desabotoava a braguilha e lhe arrancava a tanga cor de carne, violáceo meu membro estremecia no contato frio do orvalho da noite do ventre dela e meus braços desesperados a cercavam, enfurecido eu queria quebrá-la devorá-la esmagá-la para me apaziguar contra ela e agora o prazer da penetração na fenda musgosa já era dor eu sentia o pênis arder de encontro à fria imobilidade dela e minhas mãos fechavam o vazio porque ela, Sílvia, ela já não estava mais, já não era, a minha quase-posse, ou teria sido realmente posse? a desfizera, e eu soluçando me esfregava, menino, no tronco áspero da romãzeira, na fibra gosmenta da bananeira, eu garoto, pequeno, impotente, devorado pela jaqueira enorme do quintal, o pênis esfolado e agora frouxo pendendo no alívio temporário e humilhante, enquanto ao longe a voz de minha mãe me chamava, pelo pasto: “João... João Henrique. Joãozinho!... Onde você está, menino? Passa já pra dentro que está serenando”.

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Do livro Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão  (DBA Books & Arts, SP-2004)
                                                   


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