SÍLVIA
Conto de Cecilia Prada
A
primeira coisa que me atingiu foi o cheiro de mato doce, mato de manhã, lavanda
de loja de perfumes naturais, cheiro de suavidade maliciosa, pensei. E que me
excitou logo.
Olhei-a: verde. Sim, o vestido só podia ser verde, pensei, e a pele aquela cor
de maçã amadurecendo. Ou cor de casca de romã. A minissaia verde de babado e as
pernas tensas se oferecendo. E aquele jeito esquivo de olhar, como quem zomba.
Um jeito que me atingia de cheio, junto com o perfume de manhã no mato e com o
meneio das cadeiras, do tronco leve e flexível. Oi – ela me
disse. E de repente, no saguão onde trezentas pessoas se comprimiam tentando
alcançar o bufê, só ela existia, me chamando.
Fiquei como um bobo, como menino de dez anos, olhando para ela, com um repuxão
forte no sexo.
– Oi, respondi. Eu me chamo João Henrique. E você?
– Sílvia.
Alguém a empurrou e o seu braço de penugem leve castanho-dourada tocou no meu e
eu já era, desde aquele momento, uno e tenso num desejo que subia em mim com
garras. Esqueci o que estava fazendo ali, só existia ela, Sílvia, o tronco
verde flexível, a cor de fruta que amadurece, o cheiro de folhas pisadas. E
minhas mãos, senti – agarrando forte o copo de uísque –, se ficassem livres
teriam fúrias que só se apagariam quando conseguisse cravá-las no flexível
tronco nu, por baixo da pelagem daquele vestido verde.
– Vamos sair daqui?
Ela concordou.
– Que tal um lugar mais sossegado?
Evidente que era um clichê. Me senti totalmente ridículo. Ela era uma deusa, eu
sabia, e que linguagem empregar com deusas? ela, Sílvia, com seu cheiro de
folhas/flores amassadas, ela toda seiva e convite e eu, um publicitário engravatado,
de trinta e dois anos, casado e com dois filhos. Esperei que a deusa risse com
desprezo do meu clichê. Mas ela estava parada como se não tivesse ouvido nada.
Ou como se ouvisse outras coisas. Outras vozes. E algo de tão arisco havia no
seu jeito de menina-flor, que eu, no meu desejo, temia vê-la desaparecer, ela,
Sílvia, a visão verde-úmida, verde musgo, verde-selva.
–Tem de ser num lugar muito alto. E muito quieto.
– Sim, disse eu perdido, sem poder desgrudar dos olhos oblíquos zombadores,
também eles, parecia, de uma tonalidade verde cambiante, acastanhados,
dourados, que era como uma cor pela primeira vez reparada, cor-revelação – como
no mato, a gente olha e vê todos os tons de todos os verdes, de todos os verdes
diferentemente verdes.
Perdido,
pensei. Porque já sabia que aquela frase era a primeira de uma série de ordens,
instruções para decifrar o enigma Sílvia e que o primeiro signo, alto e
quieto, seria seguido de outros e que eu cego me lançando... Uma coisa
assim de ameaça. De risco. De medo.
Tomei-lhe o braço e atravessei a rua, lembrando do bar-terraço no trigésimo
andar. Era como uma história antiga: a princesa e suas tarefas.
Ofereci-lhe a mesa mais próxima do parapeito, num gesto de quem era dono da
cidade. Aos teus pés, diva – enquanto ela pedia um coquetel de frutas. E eu,
meu quarto uísque da noite. No primeiro gole pensei é o efeito da
bebida. Porque agora eu sentia com uma viveza que me deixava louco o
cheiro das frutas do seu coquetel, mas o cheiro de cada fruta em separado,
ananás, banana, laranja, manga, sapoti, papaia, jambo... Jambo? Não havia jambo em
São Paulo, o pensamento me ocorria, me recorria, como num sonho, como uma
dessas frases-advertência dos sonhos, mas eu – e comecei a rir – eu sentia o cheiro
de cada fruta, o cheiro do jambo também, e do caju, e da pitanga, e do pequi, e
da mangaba, e do açaí, os diversos cheiros esmagados, como o das folhas do seu
perfume de loja de produtos naturais, tudo se somando, e me obcecando – e tudo
o que eu sabia, tudo o que eu conseguia saber naquele momento era que queria
apagar minha febre minha fome minha sede contra aquele tronco nu e flexível de
pelagem verde, apagar-me, possuindo-o.
Afastei o uísque, desconfiado. Enquanto ela, tranqüila, tão fria e distante da
minha febre, com gestos de menina eterna sugava o coquetel de frutas, com um
canudinho plástico. O tempo regulamentar – pensei, medindo a duração dos
momentos rituais de uma aproximação bem educada, civilizada, bem ritmada,
tentando uma conversa na qual eu deveria mostrar-me despreocupado, alegre,
engraçado, bom companheiro, amigo, etc. – todas essas coisas que eu não era nem
queria ser, dela. Ou de mulher alguma, na verdade. Para depois, só depois,
chegar à única coisa que me interessava, a aproximação física, a mão primeiro,
o braço depois, aquele infalível por que você não chega mais perto?
O beijo. O convite. A cama, enfim. Se tivesse sorte.
Foi naquele momento que percebi o que havia de diferente naquela tensão de
espera, naquela particular noite, naquela particular mulher – eu só conseguia
imaginar- me possuindo Sílvia numa fúria violenta, de pé contra ela, num
esmagamento, só assim, numa fusão... E senti medo. Medo, eu, publicitário,
engravatado, trinta e dois anos, casado e com dois filhos. Como se ela, aquela
doce moça de fragrâncias naturais e vestido verde, a moça de pele de casca de
romã, a moça que sorvia um coquetel de frutas com um canudinho, fosse me
devorar. Como se no momento daquela posse eu pudesse me ver desaparecendo dentro
do seu corpo e...
Não devia ter bebido tanto, pensei, aborrecido.
– João Henrique.
Ela
disse meu nome de leve e o som era uma pontuação no silêncio. Porque
evidentemente naquele momento, naquela noite, eu não estava conseguindo cumprir
a etapa “conversa” do ritual de aproximação. Ela percorria a minha insegurança.
A minha angústia. Uma angústia que me excitava ainda mais, como se tudo me
fosse novo e desconhecido. Reparei também que o final da tarde estava tranqüilo
demais, que se podia ver uma estrela no céu transparente, uma estrelinha
precoce piscando – o que era impossível numa cidade como São Paulo, pensei.
Como há pouco pensara que era impossível reconhecer o cheiro do jambo no seu
coquetel. E o silêncio. Um silêncio demasiado, impossível ele também, naquela
hora do ruche, mesmo lá em cima no trigésimo andar. Ao menos as buzinas... Ao
menos as buzinas.
Mas a princesa, quando nos levantamos da mesa e maquinalmente nos olhamos num e
agora?, a princesa já me dava a segunda ordem:
– Tem que ser muito escuro. E muito longe.
...e era um desafio, uma vez mais pensei, me sentindo como um garoto que tinha
de enfrentar dragões e piratas, e esse desafio era um estímulo, porque agora eu
tinha a confirmação: havia algo, sim, naquela mulher-menina infinitamente
antiga, alguma coisa que não poderia de forma alguma combinar com motéis e
lençóis.
(...mas quando descíamos no elevador havia uma parte de mim que queria dizer
isso mesmo, “um bom motel e lençóis”. Uma parte tola, banal, comodista, de mim.
Banal como a minha gravata, o meu terno de tropical. A minha profissão – suspirei).
...e a outra parte minha, a que vinha de longe e me espiava de um canto, sentia
de uma forma muito aguda a estranheza clara de todos nossos ritmados
movimentos. Naquela noite.
A bebida, a bebida, eu repetia num pasmo, talvez tenham misturado alguma coisa,
e enquanto isso abria a porta do Jaguar, para Sílvia subir. Enquanto nos
afastávamos da cidade numa corrida tão louca quanto permitia a frustração
sistemática dos sinais de trânsito, nem eu nem ela falávamos. Eu só sentia a
pulsão do sexo sob o tropical, cada vez eu mais obcecado pelo flexível
junco-tronco-flor ao meu lado, sabendo que na hora da posse minhas unhas iam
dilacerar sua pele de romã. Essa pulsão, essa fúria, era comum aos dois. Eu
sentia isso no seu silêncio. Estranhamente não houvera entre nós a banalidade
do beijo, do abraço desajeitado, da mão sob o vestido, nada. Era uma corrida só
e frenética, para um objetivo final.
Quando chegamos à mata da Cantareira a noite já chegara também, devagarinho,
com volúpia e delícia demorada de noite de verão, uma cumplicidade a sua
escuridão que espantava para muito longe um último raio encarnado do poente.
– Aqui, me disse a princesa.
Eu refrei o esbravejante Jaguar, estacando-o.
Quando desceu, a saia verde de babados rodopiou, E com os cabelos agora
desatados ela correu para uma pequena elevação de terra e ficou assim um
momento e havia um vento leve e o seu rosto de olhos fechados ainda era visível
naquele último clarão dourado, ela toda verde castanha dourada, ela e seu
cheiro de mato aguçado e dominante e que me deixava louco e eu aos tropeços
corri para segurá-la mas ela mais ágil se esquivou, agora com um riso de mofa.
E tirando as sandálias começou a correr descalça e depois sentiu as meias como
se estivessem incomodando a sua corrida e naquele breve momento em que levantou
a saia para tirar rápida a meia-calça eu a alcancei e...
Mas não a alcancei porque ela já fugia rindo, rindo, os cabelos soltos muito
longos e loucos e ela, louca, que se perdia entre os troncos, afastava os
galhos soltos, livrava-se dos espinhos, corria, corria e eu atrás, eu ainda de
gravata e terno, e nascia uma fúria em mim contra minha roupa, meu impedimento,
eu sentia, eu queria arrancar tudo e comecei pelo mocassim de cromo alemão que
chutei para longe embora ainda registrasse que era de cromo alemão, como se
naquele momento último houvesse ainda um resto, um resto só de valor monetário
em mim, mas o deseja da liberdade, de Sílvia, prevalecia, e arranquei a
gravata, o paletó, a camisa, e ofegante corria, me perdia confuso mas ela
estava no seu elemento e eu, eu me embaraçava nos galhos, tropeçava nas pedras,
os espinhos me rasgavam, eu ridículo, eu só, eu homem da cidade, e a raiva me
cobria de suor e essa raiva aumentava o desejo, eu palpitava com a noite com as
árvores com ela, Sílvia, eu a agarrava enfim, eu lhe rasgava o vestido verde eu
lhe enfiava as unhas na carne clara eu a encostava contra a aspereza de um tronco,
eu desabotoava a braguilha e lhe arrancava a tanga cor de carne, violáceo meu
membro estremecia no contato frio do orvalho da noite do ventre dela e meus
braços desesperados a cercavam, enfurecido eu queria quebrá-la devorá-la
esmagá-la para me apaziguar contra ela e agora o prazer da penetração na fenda
musgosa já era dor eu sentia o pênis arder de encontro à fria imobilidade dela
e minhas mãos fechavam o vazio porque ela, Sílvia, ela já não estava mais, já
não era, a minha quase-posse, ou teria sido realmente posse? a desfizera, e eu
soluçando me esfregava, menino, no tronco áspero da romãzeira, na fibra
gosmenta da bananeira, eu garoto, pequeno, impotente, devorado pela jaqueira
enorme do quintal, o pênis esfolado e agora frouxo pendendo no alívio
temporário e humilhante, enquanto ao longe a voz de minha mãe me chamava, pelo
pasto: “João... João Henrique. Joãozinho!... Onde você está, menino? Passa já
pra dentro que está serenando”.
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Do
livro Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão (DBA
Books & Arts, SP-2004)
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