(1997)
Que
assim se fará, me digo, a mão deslizando no papel antigo reencontrado, diário
de liberação do micro, diário de deixar-me ir (vir), ser, não-ser, catar/coçar,
mas dizer - da dor da madrugada em que acordo ainda com a coluna massacrada da
véspera e vou me perdendo nos túneis da insônia.
O Diário de um Não-Livro é a
liberdade. É pegar as pontas esgarçadas
do ser, minhas talagarças, fios soltos, capinzal. Uma personagem de Clarice também
dizia: “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me
resignar a seguir um fio só : meu enredamento vem de que uma história é feita
de muitas histórias”.
Isto sou eu, meus escritos, a
perplexidade. O que é escrever - a pergunta eterna, que não se responde, só se
desfaz: no rabisco. Mas eu amanheci inventando a liberdade, a descoberta do
Não-Livro que se faz sempre, obscuro e destravado em nós, se processa. E de
repente em um dia, mais uma madrugada chuvosa, e acordando em dor: que é
preciso prestar um ouvido a esse Não-Livro em nós, aquele que, por primo pobre
e sombrio, rejeitamos - porque ele é o verdadeiro, é o rascunho do Ser
e o Ser é sempre rascunho, pobre,
esfarrapado, e glorioso também, mas de glória solitária, o resplendor na noite
- o dom das madrugadas. E o resto, é academia de letras. E João Guimarães Rosa
dizendo, no seu último discurso, na posse da Academia Brasileira: “Mas o que o
homem é‚ depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar em si mesmo a
natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele
tentou dar ao próprio e dorido rascunho”
e
assim me redescubro, um eu-menina, Cecília com seu caderno, a hoje grisonante
estafada senhora, o freio nos dentes, o olhar numa súplica última : o Caderno,
nos dentes. Duas pontas.
(O
Não-Livro, sim, que é coisa de esconsos e parênteses, está desperto em mim
nesta recém-manhã e me traz as coisas pelo menos da véspera, mas que saem do
imenso caldo em que estiveram mergulhadas - do fluxo existencial que vem também
de outros tempos, de outras vidas?)
A
“ficção” é sempre a ficção de que o livro se fez de uma vez só - escrito
inteirinho , por milagre. Em qualquer livro de ficção, romance ou novela - a
ficção é a mentira do escritor escrevendo aquele livro sem continuar vivendo
sua contingência diária, seu suor/lágrimas/sangue. Como se levasse os
manuscritos sobre as águas, ou sobre o
ronco do terremoto - que é o desta realidade em que vivemos. Um livro sem “Nohant”
– e explico: que eu sempre me dizia que um dia, quando fosse mais velha, como
George Sand me retiraria para uma propriedade chamada Nohant e ficaria ali com
meu cachorro, escrevendo e passeando no campo, feliz e sossegada. Mas hoje, sem
sossego, sem propriedade alguma campestre ou urbana, e nem mesmo um cachorro
que me preste um ouvido atento, só tenho em mim este livro que é Não-Livro,
porque eternamente incompleto, desatado, livro da metrópole e dos meus 350 eus,
das costuras esgarçadas se mostrando
obscenas, rindo um riso muito mau, derrisão - na face do todo-dia.
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