Dessa avó, posso dizer que a sinto tronco e nó. Que nos meus cabelos
encontro suas raízes. Quando me penteio, lembro dos dela, grisalhos e que nunca
foram cortados, caindo-lhe pelos joelhos, para espanto da meninazinha de seis
anos que assim, numa revelação, via uma avó diferente, quase moça – antes que a
cabeleira voltasse inexoravelmente a amarrar-se no coque do alto da cabeça.
Dessa avó, nasceu-me uma curiosidade, pelo meio
da vida. Nos meus inquietos membros, nas noites insones, na vontade de fuga,
minha avó – achei-a em mim.
Uma vez ela me contou: “Depois de casada, uma vez passou um
circo em Ribeirão das Velas, eu perguntei para o Jorge porque a gente não ia
embora com eles”.
Mas a lembrança que me parece mais forte é uma
que nunca pude ter, que se formou de um retrato esmaecido, um riso, um olhar. A
lembrança que me veio de contada, ao pé do braseiro, numa noite fria: a da Ana
de 1897, com seu cabelo solto e lindo, trepada na mangueira – o gosto da fruta,
a casca arrancada com o dente. A da Ana caçula mimada, permitiam-lhe tudo que
quisesse, montar em pelo como os irmãos, ir tocar o gado com eles, tourear
vacas mansas até que ficassem bravas. Ou banhar-se no riacho de águas claras no
frio da manhã, abrindo bem os olhos para ver como era lá embaixo.
E a ordem paterna que selara seu destino,
repercutindo no céu claro daquela manhã de abril de 1897, ecoando numa
despedida, na água fria, no pasto, na mangueira onde Ana se balançava, Ana de
dezesseis anos:
–Nhãna, desce já dai. Tá na hora do casamento.
Mas o
marido fora escolha dela, fazia questão de contar: “Quando eu tinha treze anos
meu pai me disse que eu ia casar com um conhecido dele, um velho. Eu disse que
não, que nunca. Que fugia de casa. Que me matava. Só me casei com Jorge porque quis”.
Na missa de
domingo na Matriz, os homens de um lado, as mulheres de outro, Ana olhava para
Jorge – bem posto, vinte e seis anos, bigode louro retorcido. Ana ria, mostrando
os dentinhos. Desse riso, do deslumbramento de Jorge, um casamento. Uma vida.
–Nhãna, desce já dai sua peste. Não vê que tá na hora?
Passou os lábios com vagar e gozo no caroço da
fruta. Se lançou no espaço, com a última perdida liberdade de menina, a saia
aberta em balão no vento. Entrou na casa da fazenda, a irmã mais velha
empurrou-a, anda. No terreiro Chico,
o irmão que mais tarde, depois da morte do pai, com direitos de primogenitura
venderia a fazenda a retalho, prejudicando os irmãos, abriu riso largo:
– Ôta
noiva demorada, parece que nem tá querendo...
A
porta fechada, a cômoda escura abrindo lenta os seus mistérios – a mortalha
branca esperando-a. Mãos de tias impingiram-lhe bem forte um espartilho, para
que bem contida se sentisse, nunca mais a menina de corpo livre na cachoeira.
Os seios miúdos levantados como se enrijecidos devessem se apresentar ao mundo,
num atestado de múltiplas maternidades futuras.
Os cabelos levantados e presos, no penteado que
se afofava do lado mas que lhes escondia a beleza indisciplinada. Seria de
agora em diante: uma mulher casada. Uma senhora. Numa facada espetaram-lhe no
cimo do coque um pente espanhol de tartaruga, presente do pai – símbolo de um
domínio nunca perdido. Pronto o rígido manequim, as mãos femininas da família
derramaram sobre o corpo de Ana o dom supremo, o véu da tradição, amarelado.
Que lhe caiu da cabeça aos pés.
–
Foi da sua avó.
Naquela clara manhã de abril, sentindo o peso da renda francesa sobre o
corpo de menina, Ana estremeceu. Parecia o peso daquele varal de roupas que –
diziam – caíra sobre o corpo da avó Mariana, quando estava no resguardo do
décimo filho: “Chovia, recolheram as fraldas da criança, estenderam todas no
quarto. O varal caiu bem em cima da barriga dela quando estava dormindo. Ela
deu um grito e ficou louca. Resguardo é coisa de muito cuidado”.
Contemplada com a cascata de renda envelhecida sobre a cabeça, Ana
pensou na figura daquela avó louca, andando suja pela fazenda, não reconhecendo
nem os filhos. Estremeceu e se olhou no espelho. Quem era aquela estranha e
rija senhora de cabelo alto, cintura tão fina e seios assim empinados?
Levaram-na.
*
Quando a deitaram na cama,
já as dores a abriam pelo meio, espantosas. O filho entalado nas entranhas sem
querer sair, no corpo de menina que não se alargava. Que se recusava. Jorge
olhou-a, tão linda, e Jorge chorava – porque Ana ia morrer. O rosto lívido que
se contraía no grito, os olhos baços, olhando longe – via Mariana vagando louca
pelo casarão da fazenda, a cabeça batendo no travesseiro. Na fronha essa
presença constante de rendas, ainda uma vez, como se as rendas cobrissem o seu
sofrimento, como se rendas pudessem ajudar o menino enorme retido no seu
ventre.
Amarraram suas mãos na cabeceira da cama, o corpo aberto em cruz, as
pernas afastadas, a parteira gorda apoiada sobre sua barriga, apertando. Foram
buscar o chapéu do marido. Ajudava. Jogaram o chapéu, grotesco, sobre a
cabeleira dispersa de Ana, Ana que ia morrer, Ana-menina, estreita demais para
parir.
Chegaram o padre e o médico que vinha da cidade
maior. O padre ia rezando De profundis
clamavi ad te Domine, esses óleos da morte sobre o corpo em flor de Ana. O
médico de mangas arregaçadas, mergulhando as mãos fundas na pélvis, quase
desanimado: “Não tenho recursos”. A cidadezinha não permitia uma cesariana. Não
havia mais tempo para removê-la.
–Mas
essa criança passa, disse ele de repente surpreso. Ela não é tão estreita.
E
olhou sem compreender aquela menina que parecia se fechar. Se recusando a dar
vida ao pequeno ser que lhe haviam imposto no ventre. O médico sacudia-a pelo
ombro, tentando paralisar o seu rouco grito de animal estripado:
–Donana, faça força. Depende da senhora, deixe a criança vir, Donana.
Donana!
Levaram Jorge para fora do quarto, e ele soluçava, como se fosse
culpado. A mãe, chorava: “Nhãna, minha filhinha, minha filhinha, coitadinha,
ela é tão criança”.
O
fórceps agora mergulhava fundo, uma sonda de aço, impiedosa, ferindo-a, o
médico suava, pedindo: “Mais um pouquinho, Donana, faça força. Não grite,
Donana, faça força para baixo”.
A
parteira trazia uma garrafa. Ergueram Ana semi-cadáver de óleos ungida,
faziam-na soprar dentro de uma garrafa. De repente ela abriu os olhos, soprou
com uma força que parecia um ódio (Mas disso ninguém nunca soube. Nem ela).
Soprou sua alma. Aos poucos a cabeça da criança começou a surgir da pélvis
violentada, veio vindo num alívio. Algo que se desligava dela para sempre. Algo
que nunca mais seria dela. Mas que agora não a fazia sofrer mais. A cabeça de
cabelos lindos e soltos caiu no travesseiro, o menino chorou forte e Jorge
entrou no quarto, “Ana, minha querida!”. Mas os olhos de Ana permaneciam fixos.
O médico disse: “É um menino, Donana”. Ela só
disse: “Me deixem dormir”.
Jorge chamou o filho de Júlio, em homenagem a seu pai.
*
Alargada à força, sem resistências, como se fosse uma abdicação, a
fecunda pélvis de Donana pariu mais nove filhos, entre natimortos, prematuros,
alguns quantos mortos na tenra infância, de diarréia, de febre, de pneumonia.
Sobreviveram seis. Aos oitenta anos, Ana chorava quando falava da morte de
Mariquinhas, a segunda filha, aquela tão linda que parecia um anjo, e que
começava a falar quando morrera de gastroenterite. Contava: “Eu já estava até
prenhe de novo (do terceiro filho, João) mas quando a criança nasceu nem olhei
para ela”.
E tudo
se seguiu no igual de todas as vidas, de todas as histórias. Na vida pobre, nos
invernos duros, na comida parca, na economia, na mão rachada, nos empregos
vários de Jorge – até que arranjasse uma segurança mísera como escriturário de
um cartório. No parto dos gêmeos, natimortos, ela quase morrera também.
“Cheguei a ficar de unha roxa e mestre Marcelino veio me ver, ele olhou para
mim de cima a baixo e eu sabia porque, era para medir o tamanho do caixão.”.
Milagre de São Benedito salvara Ana. Quando se levantou, amarrou um pano
branco na cabeça, ficou na rede balançando, um ano, sem falar com ninguém.
Enquanto a filha Lourdes, de oito anos, tomava conta dos irmãos, pondo um
caixote para alcançar o fogão de lenha, queimando-se com óleo fervente. Se
iniciando.
Depois de um ano, Ana desamarrou o pano da cabeça, retomou a vida. Teve
mais três partos, todos dolorosos, um bem sucedido. Aos trinta e oito anos não
tinha mais um dente. “Cada filho um dente”. Mas nunca deixou que lhe cortassem
o cabelo. Para surpresa da neta, que um dia o veria todo grisalho, e tão
comprido que lhe chegava aos joelhos.
Levantava bem cedinho e antes das lides da casa lia o jornal, soletrando
alto. “Quando eu era menina foi um alemão lá na fazenda, me ensinou a ler. E
disse para o meu pai que era uma pena, que eu devia estudar. Mas naquele tempo
só homem estudava. Meu pai mandou o alemão embora porque punha idéia na minha
cabeça. Nunca aprendi a escrever. Só sei assinar o nome”.
Jorge tinha muito orgulho da família que ia crescendo. Olhava para os
netos: “Não é para falar, mas que meus netos são todos muito bonitos, são.
Puxaram pela avó”. Se gostavam ainda, ele, Ana. Vieram as bodas múltiplas, de
prata, de ouro. Dois anos antes das de diamante Jorge morreu, numa noite, de
repente.
Ana nunca mais falou no marido morto.
Começou a ficar de olhar vago, a falar das coisas da fazenda, do fundo claro do
ribeirão, uma beleza quando a gente mergulhava com os olhos abertos, via todos
aqueles peixes. E falava da vaca malhada, que era tão mansa, e ela brincando de
tourada com ela, virara uma fera . Ria olhando para coisas que só ela via.
Os
filhos e netos ficaram tristes. “A mãe começou a caducar”.
Num dia de festa, o batizado da primeira
bisneta, notaram que Ana misturava os nomes e as pessoas, tratava as netas
trintonas como se fossem meninas.
Um
dia lhe apontaram o filho mais velho, Júlio, de cabelos brancos, apoiado numa
bengala – esse que quase a matara, esse que lhe disputara a vida nas entranhas
que se fechavam.
– E
esse aí, Mãe, quem é?
Ana
olhou com olhos vagos, do alto da mangueira, riu alto:
–
Esse velho aí? Sei lá.
______________________
Do livro Estudos de Interiores para
uma Arquitetura da
Solidão- ( DBA Books & Arts-SP-2004)
______
Nenhum comentário:
Postar um comentário