MESTRE GRAÇA – um
magro convicto
Graciliano
Ramos (1892-1953), que com alguns poucos ficcionistas - como Machado de Assis,
Guimarães Rosa, Clarice Lispector – vem atravessando o tempo e gerações
sucessivas, fascinando seus leitores com
seu estilo, com seus grandes romances e personagens inesquecíveis, foi definido
pelo mestre da crítica que é Antonio Candido, em síntese feliz, como“...escritor sem gorduras, magro convicto,
de carnes, porte, personalidade e evidentemente estilo literário.” Desde a publicação
de seu primeiro romance, Caetés, em
1933, trabalhos críticos da maior importância vieram acompanhando sua
trajetória literária – Candido,por exemplo, consagrou-lhe vários estudos, entre
os quais se destaca Ficção e Confissão:
ensaios sobre Graciliano Ramos , de 1956, reeditado em 1992 - e assim foi sendo mantida sua fama, quer entre
o público geral quer no pódio dos especialistas, e suscitando até hoje grandes
edições.
Álvaro
Lins, por exemplo, na introdução a Vidas
secas, situa a originalidade estrutural dos romances de Graciliano no
encontro de duas linhas convergentes de sua personalidade de autor - como um
homem do seu meio físico e social, mas
capaz também de se voltar para a introspecção, a análise, os motivos
psicológicos, e de sobrepor ao plano regional da obra, o plano universal, sendo
o todo expresso em uma linguagem trabalhada , que se diria “clássica”. Com a mesma
visão, Otto Maria Carpeaux , com a autoridade de sua grande cultura européia, ressalta
a “essencialidade” na obra de Graciliano, sua cuidadosa, quase maníaca
preocupação em “escolher” os elementos que usa para descrever tanto o mundo
físico, geográfico, em que está inserido – a paisagem do agreste e também a
urbana das cidades do Nordeste - , como o mundo interior de seus personagens.
Diz o crítico: “O lirismo de Graciliano Ramos é amusical, dinâmico; é estático,
sóbrio, clássico, classicista [...] Não quer dissolver o mundo agitado, quer
fixá-lo, estabilizá-lo.” Chama também a atenção para esse “classicismo
experimentador” do autor, reconhecendo que cada um de seus romances é de um
tipo diferente, e, para analisá-los,
serve-se de um referencial estabelecido com vários escritores internacionais
famosos, romancistas, teóricos de literatura e até filósofos, concluindo: “Todos
os romances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar com o sonho de
angústia que é esta vida”.
Segredos da criação literária
No
entanto, apesar do grande número de obras de crítica catalogado, algum mistério
pairou sempre sobre a singular figura do escritor e sobre o entrelaçamento de
suas peripécias existenciais com a temática literária que desenvolveu. Calado,
pouco dado a confidências, bastante insociável, ele foi deixando para trás
muitas perguntas sem resposta, silêncios inexplicáveis e meio nebulosos,
curiosidade. E somente em seus últimos livros, Infância (1945) e Memórias do
Cárcere (publicado no mesmo ano de sua morte, 1953) foi que abriu particularidades
autobiográficas, deixando fluir, nas recordações, uma enorme emoção represada.
Mas o esclarecimento de alguns
fatos, inclusive de cunho político, bem como uma descrição mais fiel do ser
humano sensível que havia por trás de
certo exagero de secura no seu trato, só foi possível após a publicação, em
2011, de um livro póstumo de seu filho, também escritor, Ricardo Ramos
(1929-1992): Graciliano Ramos- retrato
fragmentado.
Como filho mais velho do segundo casamento de
Graciliano, Ricardo não pôde conviver tanto como desejaria com o pai. Contava
sete anos em março de 1936, quando o escritor foi preso em Maceió e transferido
para o Rio de Janeiro, sob acusação – nunca formalizada – de ter participado do
fracassado levante comunista de 1935.
Graciliano só seria libertado em janeiro de 1937.
Embora a família se estabelecesse então definitivamente no Rio, Ricardo, que ficara
em casa de avós, terminaria o curso ginasial em Maceió e só se reuniria de novo
aos seus em 1944 – mas deixou
registrados com profusão de detalhes os preciosos anos da intimidade partilhada com o pai, até 1953. Uma troca
permanente de afeto, convergência de interesses literários, resoluções de
problemas cotidianos, desde o momento em que ambos acordavam e começavam a
conversar repartindo o espaço do banheiro, um se barbeando e o outro tomando
banho. Ricardo foi companheiro constante do pai também nas rodas literárias,
nos encontros sistemáticos com os amigos,
em sua própria casa ou em locais públicos. Como escritores trocavam
experiências, comparavam pontos de vista, ajudavam-se.
Ricardo nega, em sua obra, algumas “inverdades” que corriam sobre o
caráter de Graciliano, três aspectos que costumam ser associados com o seu
perfil psicológico : o de “personagem inteiriça, quase olímpica”, o de
“criatura rude, um autodidata que simplesmente teria decidido um dia escrever”,
e o de um “intelectual cooptado”, que teria tido de se adaptar às regras do
Estado Novo. Ressalta igualmente sua
honestidade e imparcialidade como escritor, pois, embora tenha sido sempre
homem de esquerda, e até mesmo membro do Partido Comunista a partir de 1945, Mestre
Graça – como era carinhosamente chamado pelos amigos - nunca se sujeitou a qualquer
tentativa de “patrulhamento” por parte dos companheiros ou dos dirigentes.
Resultaram completamente vãs as numerosas tentativas feitas por estes de impor
ao escritor, já famoso, um “realismo socialista” nos moldes do que transformou
a literatura soviética em histórica experiência abortada, e até mesmo de vetar
a publicação de livros que incomodavam o Partido pelo seu conteúdo critico,
como Memórias do Cárcere ou o relato
de sua viagem à URSS . Essa resistência
provocou inclusive sua classificação, pelos próprios camaradas de
ideologia, como escritor de estilo “elaborado
e elitista, o oposto do que se considerava simples, accessível às massas.”
Sobre esse
aspecto, diz Moacir Werneck de Castro, em seu livro A máscara do tempo:visões da era global (Civilização Brasileira.RJ-
1996): "Graciliano
Ramos estava longe de ser um 'bom comunista', segundo os manuais. Não se
enquadrava na rigidez dos estatutos. Sentia-se desconfortável numa engrenagem
partidária a cujos cânones de literatura e estética tinha horror. Mas ai do
reacionário que viesse tentar confundir as suas restrições e 'desvios' com a
infidelidade ao socialismo, com qualquer tipo de conformismo e aceitação da
cruel injustiça vigente, ainda hoje, na sociedade brasileira. Responderia com
palavrões a quem buscasse atraí-lo para o regaço ideológico dos
opressores" .
Da mesma forma não é justo classificá-lo – como alguns tentaram fazer –
como “cooptado pelo fascismo do Estado Novo”. Premido pelos encargos familiares,
aceitou fazer pequenos trabalhos para o Ministério da Educação de Gustavo
Capanema (cujo chefe de gabinete era Carlos Drummond de Andrade) e foi nomeado
e exerceu a função de inspetor federal de ensino. Graça nunca escreveu, porém,
uma linha sequer de apoio ao regime ou de elogios encomendados. O professor e
crítico Dênis de Moraes, no elaborado artigo Graciliano, literatura e engajamento, publicado na Internet em
setembro de 2006 no site da revista cultural “La Insignia”, diz que “Graciliano
trazia azedume na língua ao falar da situação marginal dos escritores que
ingressavam no serviço público e via neste apenas a alternativa para uma
situação de fome”. E fornece, o
articulista, um grande elenco dos mais
renomados intelectuais da época, tidos como “esquerdistas” e inimigos de
Vargas, que no entanto colaboravam com artigos de sua especialidade para a
Revista Cultura Política, publicada pelo DIP.
Cita ainda Antonio Candido, que “ com sabedoria, separa os intelectuais
que ‘servem’ dos que ‘se vendem’, para que não surjam juízos apressados sobre
casos distintos na órbita do poder” . Os intelectuais integravam-se à máquina
estatal na condição de funcionários subalternos das superestruturas e não
tinham poder de definir políticas públicas nem de formular premissas ideológicas.
Ricardo
Ramos nos dá também um testemunho da maneira de escrever do pai – a sobriedade,
a precisão da escolha vocabular, o sistemático ato de “cortar a gordura do
texto”, a calma da rotina diária: de pijama, sentado à mesa que ficava no seu
quarto, escrevia desde cedo até as onze horas, em letra miúda e regular. O
resultado , parco, escandalizaria os hodiernos produtores de sucessos mercadológicos:
apenas dez ou vinte linhas manuscritas, a lápis, que, datilografadas, davam no
máximo uma página. Diz ainda Ricardo que seu pai mourejou em um trabalho quase
braçal, “da crônica ao artigo sobre livros, da revisão de textos às traduções,
ganhando a vida por empreitada e se economizando naquilo que considerava
fundamental: a sua opinião”, pois nunca escreveu, ou subscreveu, aquilo em que
não acreditava.
Em entrevista televisionada em 2012 – ano de
comemoração dos 75 anos do lançamento do romance Angústia - Antonio Candido
revisitou seu próprio ensaio Ficção e Confissão, ressaltando um
fato importante para se compreender melhor a obra do autor : Graciliano , que
sempre, desde a chegada de Getúlio Vargas à cena histórica, fora seu inimigo
confesso – o que seria mesmo o motivo determinante de sua prisão – só pôde
obter uma pronta aceitação e grande difusão de suas obras justamente pela radical mudança de paradigmas sociais e de
cenário cultural representada pela Revolução
de 1930.
Realmente é isso o que se pode depreender da maneira
como seu primeiro romance, Caetés,
foi publicado : o escritor, já na maturidade, fizera até então carreira como
jornalista, comerciante e funcionário da administração pública de seu Estado,
Alagoas, e ocupara de 1927 a 1932 o cargo de
Prefeito do município de Palmeira dos Índios
- escrevendo desde 1925 seu romance, nas horas vagas.
Um editor boêmio
Figura
proeminente do cenário cultural daquele período foi um poeta e editor , Augusto
Frederico Schmidt, que passaria à história como o responsável pelo lançamento
de vários de nossos maiores escritores, no curto espaço de quatro anos
(1930-1934) em que esteve à frente da
Schmidt Editora, sucessora da Livraria Católica de Jackson de Figueiredo
– comprada por um grupo de intelectuais católicos e entregue a ele para que a
administrasse. Foi assim que apareceram : José Geraldo Vieira, Rachel de
Queiróz, Gilberto Freyre, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Octávio de Faria,
Lucio Cardoso, Marques Rebelo e Vinicius de Moraes. Apesar de dirigir uma editora católica,
Schmidt manteve um espírito isento e ousado e soube lutar pela independência
ideológica de seus autores, contrariando as duas facções em luta acirrada,
católicos e comunistas.
Ao lançar, por exemplo, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, Schmidt
teve de arrostar a ira dos comunistas “assombrados pela força revolucionária do
ensaio inclassificável” ( como dizia o próprio Freyre), e os preconceitos dos
católicos tradicionais, chefiados por Alceu de Amoroso Lima. Na vez de lançar
Vinicius de Moraes, teve de provar para a maioria dos críticos que se tratava
de um poeta importante.
São bem conhecidas as circunstâncias da estréia literária de Graciliano Ramos – o
escritor José Américo de Almeida, que na época era ministro do governo Vargas,
recebera de Graciliano, então prefeito de Palmeira dos Índios, um relatório tão
bem escrito que concluiu: "Este homem deve ter um romance na gaveta".
Tinha. Tratava-se justamente de Caetés,
que foi encaminhado a José Américo e por ele remetido a Schmidt. No entanto, o
tempo passava sem que o editor se manifestasse. Não por desinteresse, mas
simplesmente porque perdera os originais – Schmidt era um grande
"bagunceiro", um "boêmio nato". Para felicidade de nós
todos, certo dia, transcorrido um ano, o editor reencontrou os originais, que
havia deixado no bolso de uma velha capa de chuva.
O segredo que possibilitava à pequena e deficitária
editora lançar autores de tanta importância era, além do "faro" de
Schmidt para descobrir talentos, a antecipação de um processo comercial hoje amplamente
empregado – a chamada "captação de recursos", que naquele tempo não
tinha o amparo de leis de incentivo cultural. Apenas o interesse genuíno de
patrocinadores. Ao deixar a pequena editora, Schmidt prosseguiu em sua carreira
empresarial, enriquecendo - entre outros feitos, inaugurou o sistema de supermercados
no Brasil, com o Disco, e fundou a Panair do Brasil. Como jornalista e empresário,
tornou-se uma das mais influentes figuras políticas, no governo de Juscelino
Kubitschek.
Estruturas diferenciadas
Falando
especificamente de Angústia – que,
com Vidas Secas, constitui par
indiscutível de obras-primas no conjunto da obra do autor-, ressalta ainda Candido sua estética
expressionista, com a interpenetração de tempos e discursos, repetições
fragmentadas, devaneios e alucinações do personagem Luís da Silva – um “pobre
diabo” com algumas pretensões intelectuais, capaz de chegar ao crime frio e
calculado pela ruminação constante de suas frustrações, sexuais e sociais.
Livro que atingiu em cheio, como salutar raio
criativo, o cenário intelectual do país, alcançando também imediatamente o
grande público já na ocasião do seu lançamento – justamente no ano em que seu
autor esteve preso, 1936.
Com Angústia, Graciliano tomava distância e assumia a dianteira
no panorama do ciclo nordestino de romances – ele não se limitava, como Zé
Lins, Rachel de Queiroz, José Américo, a descrever “de fora” a realidade do seu
meio e do homem. O substrato de sua literatura foi sua própria vida, seus
próprios sentimentos, sofrimentos, frustrações, a constante revolta e luta. Soube
colocar-se nos personagens, ou antes extrai-los, vivos, palpitantes, de seu
sofrido viver. Diz Candido que o personagem Luís da Silva “é um pouco o resultado
do muito que, nele [Graciliano], foi pisado e reprimido”, representando, na sua
obra, “o ponto extremo da ficção, o máximo obtido na conciliação do desejo de
desvendar-se com a tendência de reprimir-se”. Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira, situa igualmente Angústia “no limite entre o romance de tensão crítica e o romance
intimista” : “De um lado a brutalidade da linguagem que degrada os objetos do
cotidiano, avilta o rosto contemplado e cria uma atmosfera de mau-humor e
pesadelo; de outro, a auto-análise, a “parada” que significa o esforço de
compreender e de dizer a própria
consciência”.
Paradoxo que o autor acabaria por resolver ao
lançar-se na parte inteiramente confessional de sua obra, em Infância (de 1945) e em Memórias
do Cárcere (de 1953). Sua trajetória existencial e literária, portanto,
caracteriza-se como rumo ao desvendamento do inconsciente, pela via das
recordações – os episódios de sua rude criação em uma família de classe média
nordestina, pois seu pai era comerciante,
como também ele seria, em um certo período de sua vida. A violência que retrata
como sempre presente nas relações domésticas, na família, na escola, tanto no
meio rural como no urbano, é o fundo sobre o qual tece suas obras de ficção. Impactantes,
inesquecíveis, são alguns dos episódios : a tremenda e injusta surra que leva
do pai, aos quatro ou cinco anos de idade, descrita em “Um cinturão”, que foi também publicado em forma
de conto, integrando o livro Insônia;
o horror do método de alfabetização forçada por sistemática da pancadaria, o
habitual tratamento dado às crianças, “bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de
orelha”; a expulsão da casa paterna de
uma irmã muito querida, que se apaixonara indevidamente; a prevalência da lei
dos senhores da terra sobre os menos afortunados, os regulares massacres
cometidos pelos “cabras” a serviço dos fazendeiros. Um panorama sombrio, tingido de sangue,
exposto em suas feridas , em suas perversões – retrato incomparável da vida na
sua região, na sua época.
Se no primeiro romance, Caetés, o escritor não dispunha ainda de maestria literária e
limitava-se a seguir a trilha dos romances de Eça de Queiroz, que muito
admirava; se em São Bernardo já tornava autônoma sua voz, por meio de
um personagem inesquecível, o fazendeiro Paulo Honório, em Vidas secas (de 1938) consegue a síntese estilística, a maturidade
plena, e nos dá em quadros precisos, em poucos e relevantes traços, o retrato
do sertão castigado, de seus “retirantes”, seres primitivos, inarticulados e
analfabetos, incapazes sequer de compreender a realidade em que estão inseridos
e que se limitam a seguir, com a conformidade de animais, os ciclos da natureza.
Sua estrutura é semelhante à dos retábulos
medievais que narravam feitos de heróis ou da vida dos santos, em
unidades autônomas mas integradas em um conjunto – o que fez o espírito
brincalhão de Rubem Braga classificá-lo como “romance desmontável”.
Apesar da variedade formal de cada livro, o todo da
obra de Graciliano mostra uma coerência de modo de sentir, de conteúdo, de
visão do mundo, “um desejo de testemunhar sobre o homem” – no dizer ainda de
Antonio Candido, inegavelmente seu maior crítico. A exeriência vivida – dizia
ele próprio – era a condição básica de sua literatura: “Minhas personagens não
são seres idealizados, e sim homens que eu conheci”. Em carta
à irmã Marili Ramos, de 23 de novembro de 1949, escrevia também : "Só
conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue,
é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos,
só podemos expor o que somos".
Nenhum comentário:
Postar um comentário