quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

NO ITAMARATY: tríplice discriminação

                       
Não é verdade que a Comissão Nacional da Verdade “não localizou desaparecidos”, vítimas da ditadura, como há quem diga. Eu sou um desses desaparecidos e foi a Comissão que me procurou e me fez reaparecer, em fevereiro deste ano de 2014, gravando este depoimento, que agora torno público por considerar este ato como um imperativo moral, e pedindo já aos que me lêem que o divulguem ao máximo:
Para minha grande surpresa, já que vivo há vários anos em exílio nesta cidade de Campinas  uma  velhice amargurada e em circunstâncias econômicas realmente penosas, exercendo como free-lancer minha profissão de jornalista e escritora, fui contatada em fevereiro por uma pesquisadora da UNICAMP que trabalhava para a Comissão Nacional da Verdade, – pois a Comissão, como me foi dito, preparava também um dossiê sobre “casos de discriminação por gênero” ocorridos no país de 1946 até hoje  e eu  fora escolhida como “caso-emblemático”, protótipo histórico de “discriminação contra a mulher” , pelos fatos envolvidos, a partir do ano de 1958,  no impedimento ao exercício da profissão de Diplomata de Carreira, à qual me habilitara formando-me no Instituto Rio-Branco (Ministério das Relações Exteriores ), na turma de 1957.

1_ Discriminação “por gênero” – Em novembro de 1958, alegando um regulamento inteiramente anticonstitucional e  baseado em leis antigas e já revogadas que proibiam o acesso das mulheres à Carreira Diplomática, o Itamaraty obrigou-me à demissão do cargo que então exercia (Cônsul de Terceira ou Terceiro Secretário), por motivo do meu casamento com o colega de carreira Sergio Paulo Rouanet, hoje embaixador aposentado. Empreendi, poucos anos mais tarde, uma aguerrida luta pelo restabelecimento de meus direitos, mas nada consegui até hoje – quando ainda existe, em sua fase final no Tribunal de Justiça da 3ª Região de SP, a ação de indenização e reversão à carreira de no. 2001.61.00.016181-5 que intentei contra a União.  


2- DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVOS POLÍTICOS –  No decurso do tempo, minha luta assumiu outros aspectos, relacionados com a situação de DITADURA  que se instalou no país a partir de 1964. Pois no ano de 1973, já separada de meu marido, requeri ao Itamaraty a volta à  carreira de diplomata, por via administrativa. Esse pedido foi amparado por parecer favorável do próprio Consultor Jurídico do Itamaraty,  e  encaminhado ao DASP ( Departamento  de Administração do Serviço Público)  pelo embaixador Antonio Azeredo da Silveira – então Ministro das Relações Exteriores –-, justificando minha readmissão “no bem do serviço público”, por contar na época o Itamaraty com um quadro deficiente de diplomatas formados.
Três anos mais tarde (1977) o pedido do Ministério foi negado pelo General  Darcy de Siqueira, Diretor-Geral do DASP (pois o órgão fora colocado, por um decreto militar,  sob jurisdição direta da Presidência da República) .Alegava-se que a figura da “readmissão no serviço público”, que antes era preceito constitucional, fora eliminada pelo artigo 113 do Decreto-Lei 200 de 1967, expedido pelo governo militar , e que se houvesse exceção no meu caso isso poderia servir “de precedente para que cassados políticos também fizessem valer seus direitos”.
Dessa forma, fui impedida PELA SEGUNDA VEZ de exercer a profissão de diplomata, para a qual me habilitara na mocidade, estudando e formando-me em condições bastante difíceis – por ser moça pobre, órfã de pai , obrigada a trabalhar  mesmo durante o tempo em que freqüentei o Rio-Branco ,como jornalista ( no Suplemento Literário do Jornal do Brasil) e dando aulas particulares ,para aumentar a escassa renda que me vinha de bolsa do MRE.

3) DISCRIMINAÇÃO ETÁRIA – Não bastasse tudo isso, ainda me envolvi no ano de 2000 com a sistemática perseguição do Itamaraty   : este publicou um edital para escolha de diretor do Instituto de Estudos Brasileiros em Montevidéu. Não estabelecia limites de idade, “parecia feito para mim”, segundo me disseram pessoas que o leram, porque havia requisitos de prática inclusive de magistério, de currículo de diplomas e atividades profissionais que eu preenchia totalmente. A escolha do candidato seria feita pelo CAPES e encaminhada a nomeação para que o Itamaraty aprovasse. Fui eu a escolhida, e uma diplomata do Departamento Cultural do Itamaraty me telefonou, dizendo que A Casa ficara até contente com a minha nomeação, por eu ter pertencido à carreira, etc. Só que  24 horas mais tarde  a a mesma pessoa me telefonou dizendo que era uma pena, mas como eu contava já 70 anos  - a idade da aposentadoria compulsória – não poderia ser nomeada.
Esbravejei muito, amparei-me na Constituição, que diz que “ninguém poderá ser impedido de assumir um cargo ou função por motivo de idade, sexo, cor, credo”etc. Observei que   não se poderia falar em “compulsória” se até mesmo uma carreira normal o Itamaraty me impedira de ter.  Mais uma atitude anticonstitucional do MRE, que insiste realmente em ignorar e contrariar a nossa Carta Máxima. De nada adiantaram entrevistas  que fizeram comigo  em várias redes de rádio e de TV –inclusive uma no Jornal Nacional, da Globo. E nem requerimentos de entidades feministas me apoiando, inclusive de uma norte-americana.
E de nada adiantou ação de indenização que também inutilmente promovi  contra o MRE, encerrada com sentença negativa neste ano de 2014 – isto é, 13 anos mais tarde.
Eis minha história. Parte dela, pelo menos. O resto será lido na minha autobiografia (já tem 300 páginas), intitulada “SOU MULHER, LOGO, NÃO EXISTO” – para a qual procuro editor adequado e corajoso. 
        Recorro, atualmente, à Comissão de Anistia, e acabo também de encaminhar uma carta à Presidenta Dilma Rousseff, pedindo que ela – que tanto sofreu e sofre com o que teve de suportar desse período negro de nossa história, o da ditadura militar de 21 anos – possa também sensibilizar-se e apoiar a minha causa, para que, idosa e estafada com tanta luta inútil,  esta mulher possa ter ao menos uma velhice mais digna, nos poucos anos que me restam viver.

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segunda-feira, 31 de março de 2014

A VÉSPERA DA TRAIÇÃO


                        “Um que come do meu prato, eis o que me entregará
                                     (Mateus VI,23)


       
           – Vocês já provaram testículos?
           Disse de repente Antonio Houaiss lá pelas onze.
           Isso acontecia sempre. Era a hora, naquelas reuniões do seu apartamento em Tudor Place, em que H. nos brindava com seus surpreendentes pratos exquis, sua paixão – petiscos, coisas de gastrônomo requintado, qualquer chicória preparada por ele era manjar dos deuses, nunca provada antes nem depois. E era o todo do seu ambiente, o requinte intelectual e material – os quadros, coleção, quadros brasileiros na maioria, alguns com dedicatória do pintor. E os tapetes persas, e aquele sofá preto – que era feito apenas de uma porta e algumas almofadas, dizia ele. E a ânfora grega do século VI A.C. E  todas aquelas coisas, seu personalismo, seu bom gosto, inscritas na trajetória daquele homem pequeno, muito feio, muito inteligente, o filho de um alfaiate árabe de Copacabana, um pequenino homem, um gourmet com apenas um terço do estômago, um diplomata que...
      – Testículos?
Nos grandes momentos históricos, há de repente um momento em que a gente sente que está vivendo um momento histórico. Que algum dia, quando se quiser contar aqueles dias, uma frase haverá, a expressão de um rosto, uma música, um cheiro, qualquer coisa – da qual nos recordaremos, como se fosse um ponto atingido, o ponto da estranheza, um ponto em que se diz aqui estou eu vivendo isto e esta é uma cena de romance. Na concreção do detalhe, e às vezes do mais insignificante e até ridículo detalhe, nos fixamos – é nele que conseguimos nos definir, muito mais tarde, dizer, ah! assim éramos, assim éramos nós, naquele tempo...
     Assim éramos nós, atingidos, tensos, infelizes, naqueles primeiros dias de abril de 1964. Um bando de diplomatas até a véspera engajados na política externa independente de um Governo que em noite recente dissera resistirei até a morte,  e que no dia seguinte aparecia sorridente e acenando na porta do avião que o levara para o Uruguai.
     Sim – vivíamos a História, seus repentes, sua traição. Naquele momento nos sentíamos órfãos, desamparados. Como cantores de ópera que, no meio de uma ária  importantíssima, sentissem que repentinamente a orquestra parara – o gesto esboçado, o sopro na garganta, a palavra cortada... de repente alguma coisa aconteceu – o tiro de pistola no meio do concerto, de que falava Stendhal?
         Surpreendidos em nossa representação. Diplomata, o que representa, eis aí. Parados no meio do palco, nosso recital que ia tão bem, tão brilhantemente orquestrado ( Congratulations, Mrs. R., your husband is the most brilliant diplomat in the Second Commitee...) tão fluente e com libreto tão interessante a ópera, nós, geração privilegiada, geração juscelinista, geração desenvolvimentista, nós que acabáramos de ganhar um mundo todinho nosso, onde ordenaríamos uma sociedade enfim justa, achávamos, ancorados na nossa pretensão...
      – O golpe militar no Brasil atingiu a coluna cervical da América Latina – diziam-nos os colegas estrangeiros, dando-nos os pêsames.
        Era esse luto, então. Essa apreensão. O que aconteceria, com o país, conosco? Estávamos ainda com os trajes da cena anterior, a garganta seca esperando, no momento seguinte o que, quê regente, quê orquestra, quê música?
        E comíamos testículos de boi, regados a Château-neuf-du Pape, congraçados, uns poucos de nós, naquela noite de abril com saudações de primavera, no refinadíssimo apartamento do nosso líder de pensamento esquerdista, em Tudor Place, entre ânforas gregas, tapetes persas e livros raros. E todos nós sentíamos, aquele era um pré-momento, a transição, como se configurariam para nós as coisas, no momento seguinte? – nós, pela própria situação profissional colocados exatamente no meio das históricas coisas, à mercê de telex governamentais ríspidos e objetivos, cada momento, cada gesto, cada movida de telex uma ameaça possível e definitiva, remoção, demissão, pescoço cortado, exílios?
          A minha ansiedade de mãe recém-parida verteu-se numa quilometral conta telefônica Nova York-Genebra – justamente na véspera do golpe meu marido viajara, para participar da sessão anual, na ONU européia. Localmente, tentava me valer da experiência dos próprios H., em matéria de reviravoltas políticas – já eram vezeiros nessas coisas. A. H. sofrera um primeiro expurgo, ainda no tempo de Getúlio – presidente-eleito (normalidade democrática? é o que se diz, basta ver isso para pensar que não...). Na mesma leva, nos anos 50, que também afastara da carreira durante sete anos João Cabral de Mello Neto.Em 1956 ambos haviam ganho uma batalha judicial contra o Itamaraty. Naqueles primeiros meses de 64, Antonio Houaiss havia sido promovido a Ministro. Sua mulher, Ruth, dizia:
           – Não pode ser. Se o A. foi promovido, alguma coisa vai acontecer no Brasil...
         Aconteceu.
         O apelido de Ruth era Cassandra.
         Mas Ruth não era a única a achar que alguma coisa devia acontecer no Brasil.
        Havia, sim, aquele feeling no ar, aquele desconforto.Desde o trágico 22 de novembro de 1963, o assassinato de Kennedy. O fortalecimento dos regimes militares na América do Sul. Da direita.
       Então naquela véspera da traição, naquela histórica última ceia, éramos poucos e avulsos, uns seis ou sete, porque logo, atingida pelo raio golpista, a Delegação se cindira – os deste lado e os do lado de lá, o desconforto, a asperidade do momento – as máscaras que caíam. O bonde da História que descarrilava. Muitos tentavam se equilibrar a todo custo, agarrando-se aos balaústres, jogando os colegas para os trilhos. Alguns conseguiram: cresceram dedos em riste, cochichos, por trás das portas. E foi na Delegação do Brasil junto à ONU, em Nova York – definida como célula comunista – que se instalaria, logo mais, o primeiro Inquérito Político-Militar (IPM) do Brasil.
         A véspera da traição.
(E o que o atraiçoou comia à mesa com ele, no banquete dos      testículos – de boi. Na ceia dos aflitos).
       Entre os devotos discípulos, comia à mesa um colega diplomata que chamarei de Gilberto Torres Melo, naquele tempo chefe interino de nossa Delegação. Era um homem feio e pesadão, e para rimar, garanhão. Cada ano aparecia com uma nova mulher, que apresentava como “Senhora Torres Melo”, um dia acordava, olhava para a cara da mulher ao seu lado e se perguntava o que esta Fulana está fazendo aqui? E despedia-a. De casamento mesmo tivera um ou dois, e um filho que lhe sobrava do outro lado do mundo. Houaiss e Ruth eram seus amicíssimos de longa data, os que lhe davam estabilidade, os que lhe lembravam o aniversário do longínquo garoto, de quem eram padrinhos. Os que lhe emprestavam dinheiro até, se dizia. Nas curtidas noites de Tudor Place e papo socializante, Torres Melo era dos mais assíduos, embasbacado de entusiasmo com os brilhantes intelectuais que lhe ornamentavam a Delegação.
          Partilhávamos naquela noite um gosto de exílio antecipado – e era uma despedida. Um banquete ritual de condenado. Porque Antonio Houaiss  já recebera ordem para deixar Nova York e assumir outro posto consular, no Canadá. Era o dedo amigo do Embaixador Azeredo Silveira, naquela época chefe do Departamento de Administração do Itamaraty, que o queria proteger, tentando retirá-lo da cena. (Não houve na realidade tempo para essa tentativa de se esconder o A. H. – um mês mais tarde, já em Montreal, acabou sendo chamado ao Brasil, submetido a inquérito e novamente cassado).
         Mas no dia seguinte Carlos Lacerda – que passaria à História como “O Corvo” – ainda empolgado pelo golpe que ajudara a tramar, ainda Governador do Rio, ainda “revolucionário” (depois seria também robespierramente guilhotinado), chegava para uma visita oficial a Nova York. Torres Melo revigorado, recuperado da depressão da véspera – tal o poder dos testículos de boi –, desdobrou-se, recebeu-o regiamente, todo sabujo e lambuzo. Num banquete teceu os maiores elogios ao Governador e à gloriosa Revolução que eliminara a Hidra Vermelha.
        E mandou a secretária ligar para os H.: eles que desculpassem, contava com a sua compreensão, mas daquele momento em diante deveriam considerar-se proibidos de comparecer ao recinto da Delegação. E suspendia inclusive a festinha de despedida que estava sendo preparada pelos funcionários – prevista no cerimonial da Casa. Porque tudo, no estreito mundo do Diplomata, rege-se segundo um estrito protocolo – até os assuntos sexuais e de família, como tive ampla oportunidade de verificar na própria escorchada pele.
          No caso de transferência de posto, prescreve o protocolo algumas palavras, mesmo alguma emoção permitida no lencinho bordado de alguma antiga funcionária – quando o chefe em questão foi “tão bom”. E a solene entrega de uma bandeja de prata, que varia em peso e tamanho, rigorosamente, com o cargo ocupado pelo diplomata. Naquele caso, sendo H. Ministro, o peso seria razoável.
        Não houve bandeja. Desfalcada ficou a coleção dos H.: Torres Melo, aquele amigo da véspera, aquele que comera do mesmo prato dele, renegava-o – proibia a entrega do troféu.
        Nem conhecia mesmo, o A. H.
        E se segurava, com todas as mãos, à Carreira, ao cargo. Morreu Embaixador, aposentado, pensão assegurada.
          Como se vê: testículos, são coisa importante.
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(Do  romance autobiográfico inédito

 MEMÓRIAS IMPERFEITAMENTE DIPLOMÁTICAS)

domingo, 1 de dezembro de 2013

LEDA LEDO ENGANO


   

Era uma vez.
Eram duas vezes.
Porque essa coisa de uma vez não existe. Todos nós que temos nossas  vivências já sabemos que as coisas do mundo sempre têm um ir e vir, umas duas faces, enleios e retornos, um dia é da caça, etc, e o que aqui se faz aqui se paga, coisas assim.
Esta é a história de Leda, a doce Leda que amigas maldosas apelidaram de Ledinha Ledo Engano – porque vivia meio gordinha, meio  feliz, com o marido bonitão, René, extrovertido, divertido, garanhão, que a enganava. Ela se deixava docemente enganar, e continuava – dizia – a ser uma mulher feliz, sem problemas, casa bela e farta e apartamento na praia, dois carros, dois filhos adolescentes, duas empregadas, gozando dessa felicidade assim toda dupla e dourada.

          Até que um dia. 
Não era nem ao menos um dia extraordinário, aquele. Mera quarta-feira, que é o dia mais com cara de todo-dia da semana, mais sem acontecimentos. Mais com cara de  mata-borrão,  de refogado de chuchu. Um dia sem urgência alguma, a quarta-feira, porque é só a véspera da quinta, e a quinta – que já tem aspirações a quase-fim-de-semana – ainda é, em si, meio chocha, sem grandes expectativas. Então, nessa quarta-feira em que as coisas deveriam andar como sempre, de repente não andaram –desandaram. Desandaram bem na hora do jantar, que era assim processado, quase um ritual, na casa: marido e mulher faziam questão de jantar com os filhos, no máximo às 8 horas, e ainda jantavam bem, com copeira servindo, comida mais leve do que o almoço, mas comida – e não essas frescuras de lanche, de improvisos, de não comer carboidratos à noite,  nada disso. Leda e René cada qual no seu lugar à mesa, o filho, a filha, alguma música leve, comentários sobre o dia . Podia até passar por uma família feliz. René às vezes atrasava, chegava mais lá pelas 9 horas, mas todos esperavam, ele se desculpava, coisas da empresa, negócio de última hora, já se sabe. Leda, Ledinha Ledo Engano, bem que reparava – a cara larga de René, bonita, satisfeita. Nos cabelos, às vezes pontas molhadas ainda – de chuveirada recente.

             Havia outros indícios que René nem se preocupava mais em esconder, urgências súbitas de negócios, recados “não me esperem, vou chegar muito tarde, estou retido aqui no escritório”. Houve mesmo um fim de semana... enfim, quem não viu, não conhece as manhas de marido infiel? Marido bonitão, regalado, continuando sua vida como se fosse solteiro, mas sem deixar faltar nada à família, vivendo todos no luxo e no engano. E a mulher...bem, a mulher. (A história é tão banal, que se poderia parar por aqui. Se não fosse, bem, se não fosse aquela quarta-feira. Que era exatamente a segunda, de um mês de setembro).

            Quem não chegou na hora certa foi Ledinha Ledo Engano. Por coincidência em dia que René chegara cedo, pelas sete horas, estranhando a ausência da mulher mas achando que seria coisa de shopping, compras. René tomou uma chuveirada ortodoxa, ensaboando todos os seus pecados. Não há registro histórico de que tenha cantado no banheiro. Diante do espelho esfregou o corpo sarado de quarentão, apalpou desgostado uns vestígios renitentes de olheiras. Deu um suspiro. Voltando ao quarto resolveu descansar um pouco nos lençóis convidativos, de cetim lilás. Pestanejou logo. Para acordar estremunhado, vinte minutos mais tarde, no quarto penumbrento – vazio de Ledinha, notou.  Onde estaria? Dez para  as oito. Cinema com alguma amiga, vai ver a Cinira, aquela faladeira, pensou. Irritado. Na sala de jantar Raul e Sandra estranhavam a ausência da mãe. A copeira não sabia explicar, disse coisas vagas, vai ver o trânsito, não ela não disse onde ia, não sei. Mas ela não telefonou, perguntou René saindo do quarto. Não senhor.

        Criara-se algo novo, naquela rotina de família feliz – uma cara torta de pergunta elevando-se no ar. Que logo mais frutificaria em ramificações de preocupação, muita irritação,  que coisa é essa, ela nunca.... etc. Os meninos resolveram voltar para a TV do living, a copeira sumiu na cozinha, René coçou a cabeça. Dez minutos mais tarde a copeira enfiou a cabeça pela porta da sala, devo servir? Não. Vamos esperar Dona Leda, deve ter sido o trânsito, ela saiu de carro, não saiu? Saíra – conferiu o zelador, no interfone.

        René passou para o living, olhou enjoado para a telinha, abriu o jornal e mergulhou. Estou com fome, pai, disse Raul. Eu também, filho. Consultou o relógio, oito e quarenta – mas afinal, o que aconteceu? A cara torta e zombeteira da pergunta foi se transformando em careta azeda, em perplexidade, desconcerto – o vazio no estômago que acontece na hora da tragédia. Vou ligar para a casa da Vovó, disse Sandra, não, não sabiam, o que aconteceu? Família toda, tios, avós, até para a casa da Cinira, da Valéria, para o cabelereiro do shopping que ficava aberto até as dez – já eram as nove e meia.

           Polícia? – alguém pensou alto.

           Não, que é isso, não é o caso, que exagero, etc. Olhe, Rosileide – era o nome da copeira – já são dez horas, pode servir o jantar, não adianta nada os meninos ficarem com fome, vamos ter calma. René olhou para o prato servido de picadinho de carne, purê de maçã e arroz à grega,  viu a dimensão da sua súbita falta de apetite. Os meninos começavam a comer quando tocou a campainha da porta e todos se entreolharam – eram os pais de Leda, aflitos. O telefone tocou. Era a Cinira perguntando se Leda voltara. Depois foi a vez de chegar Aurora, a irmã de René, com o marido – enquanto o jantar precário se equilibrando no hábito continuava, alguns se chegaram à mesa, formando grupo.
           Coro de tragédia grega?

Às  onze horas, pontual como um capricho do Destino, ouviram a chave se remexendo na fechadura – Leda Ledinha Ledo Engano fazia sua entrada (que planejara triunfal, gran  finale de ópera) mas que era só desconcertante: tornara-se em algumas horas uma mulher alta e magra, de cabeça erguida e olhar desafiador. Uma mulher que brandia, decidida, um pequeno objeto brilhante, contundente, na mão direita...
          (Não, não era uma faca. Não, nem revólver, arma alguma, não).
          ... mulher meio bêbada, dava para se ver, que avançou sem muito titubear até o meio da sala de jantar, passou os olhos pelo grupo de coristas perplexos, foi até seu lugar na extremidade da mesa – o prato continuava esperando por ela - antes de sentar encarou bem fixo René, na outra ponta da mesa, parado, de garfo no ar. Leda estendeu o braço direito, colocou no centro da mesa um objeto luzidio , prateado, sua arma: um cinzeiro barato, com vestígios de cinzas sob os quais podia ser lida (em alto e bom som) a inscrição em caracteres dourados: MOTEL  PARADISO.    
           

Se isto fosse um conto, poderia terminar por aí – anedótico e operístico.   Ou então com um final grotesco, de mau gosto – o marido traído sacando do bolso (que bolso? não havia trocado de roupa depois do banho? haveria bolso suficiente para arma – e que arma, etc? - na camiseta Lacoste, na calça do agasalho?) e abatendo a tiros (sim, teria de ser revólver, a arma, porque sem estampido o grotesco fica viúvo e chocho), abatendo a desgraçada que cairia de borco sobre o prato do picadinho diante da platéia estarrecida, naquela noite de uma quarta-feira tão igual às outras.     
           Etc.
           Mas isto não é um conto. É uma história verdadeira. Que prosseguiu, e durante muito tempo, em um enredado de circunstâncias  que de engraçado mesmo não tiveram nada.
                                
                                  (FINAL DO PRIMEIRO TEMPO)


A cena da véspera, com coristas e copeira, e até cozinheira que tinha vindo espiar, desmanchara-se em embaraço e discrição, mediada pela cunhada, Aurora, que pegou levemente no braço da protagonista conduzindo-a ao quarto e ajudando-a a se deitar. René, que ficara rubro, partindo para ameaçador  na hora do cinzeiro, foi detido pelos que é isso dos homens, enquanto os adolescentes se refugiavam nos seus quartos. Quando todos foram embora, René  arremessou-se ao quarto  com ânsias de explicação. Mas Leda dormia pesado, e ele resolveu apanhar uma coberta e  aninhar-se no sofá da sala como fazem os maridos dos filmes norte-americanos. Marinando  sua raiva para o dia seguinte.

           Mas a quinta-feira amanheceu armada em tempestade meteorológica, feia, rugindo  no acordado da manhã.  O que poderia ser até fundo sonoro apropriado para o desencadear de fúria reprimida – de algum casal. (Recurso que seria certamente usado por escritor incipiente, ou diretor cênico). No caso concreto o efeito foi  o contrário, por causa de um cidadão nipônico que de repente entrou nesta história, não anunciado, o desgraçado. 

         Expliquemos: é que na hora em que a família (menos Ledinha que continuava no quarto) tomava café da manhã, cada qual mais apressado  que o outro, a tempestade atingia o máximo. Um raio caído ali pertinho, em árvore que enfeitava a esquina, interrompeu súbito a energia do prédio. Só que René tinha que sair a todo custo, porque marcara encontro bem matutino – 8 horas - com o senhor Takeo Kamayashi, nada menos do que o CO de uma multinacional - e essa gente, já se sabe, não deixa de comparecer pontualmente chovam raios e trovões, e o homem só passaria 24 horas em São Paulo e....

            Não, você não vai sair assim, absolutamente, mas o que é isso, quer morrer, e como é que vai descer dez andares, é muito perigoso pode cair alguma árvore e os raios... René parou de repente estatelado – no meio da sala. Ninguém tinha dito isso. Leda, não estava ali, continuava no quarto? Essa teria sido, até a véspera, a expressão da solicitude de Ledinha por ele, como fora durante  dezesseis anos, imutável, segura. E agora essas coisas terríveis acontecendo – e a presença implacável daquele cidadão super-importante e nipônico ao fundo, esperando por ele entre raios e trovões...

           De repente, René se sentiu órfão. Toda a ruminação ressentida na véspera pela mulher, sua humilhação, se transformava em garra – gelada - que ia se enfiando, lenta e terrível, por dentro dele. (Coitado, que nem sabia ainda o que o esperava).

          Não agüentou mais – que se danasse o nipônico, o importante era Leda. A explicação necessária, saber o que tinha acontecido. Entrou decidido no quarto de dormir.

          Ninguém sabe com exatidão o que se passou entre o casal. Se René obteve a tal da explicação. Se Ledinha  mentiu, ou se disse a verdade – e mesmo essa “verdade”, pequenina e circunstancial, qual fosse nunca se soube. Ficou transformada em mistério para o imenso apetite da família desdobrado,  pois evidente que houve, pelos séculos afora em que todos ainda viveram, ruminações do que tinha – ou não tinha acontecido – com Leda no Motel naquela noite (e na vida, em geral). Uns diziam que sim: que ela realmente tinha um amante secreto; ou que pelo menos fora realmente ao MOTEL PARADISO naquela noite da pré-tempestade, parece até (maldavam) que fora alguém conhecido ao acaso, na rua, súbita fúria explodida como a de criança rebelde contra o charmosão e infiel René.  Outros diziam que não: que ela, tão submissa sempre, tão fiel e zelosa da família... que nada! Que tudo não passava de bazófia, para se exibir perante o mesmo charmosão e infiel mencionado acima. Afinal, um cinzeiro de motel barato não é difícil de se obter. Não prova nada.

           De certo mesmo, a família só ficou sabendo os indícios, os vislumbres que conseguimos ter, todos nós, das pessoas. Por mais próximas que estejam. Uns fiapos de acontecimento, umas suposições. Os pequeninos mourões, marcos exteriores de nós e dos outros, onde amarramos nossa (precária) experiência humana.

            No caso de Leda, diga-se logo que o que se soube, o que se ouviu dizer foi que a partir daquele exato momento ela – dizem – nunca mais falara. E que se manteve anos a fio presa no seu quarto a maior parte do tempo, movimentando-se apenas pelo apartamento, sem participar da família. Era como se naquela quarta-feira, entre cinzeiros baratos, tempestades, picadinhos, cunhadas e copeiras curiosas, algo houvesse se  rompido de vez dentro dela. Sem qualquer consideração por marido, por filhos, mesmo. 

            Bem – tratamento? Sim, é claro, uns mil. Mil e um até. Tentaram de tudo. O que dizem é que depois de tantas pílulas da felicidade que os magos da consciência lhe impingiram goela a dentro seu estado acabou piorando – enfim: aos poucos todos se acostumaram com Leda, Ledinha que parecia atestar, com sua mudez, que não era mais Leda Ledo Engano. Era uma sombra familiar, uma mulher bonita, bem vestida e arrumada – eu já disse que se cuidava? Sim, levantava todos os dias, se vestia, ia presidir o café da manhã da família. Presidir é o certo – aliás presidia todas as refeições, sentava-se ereta, impassível, muda, à cabeceira. Nem ao menos pedia para lhe passarem a manteiga, como fez aquele outro mudo célebre, Baudelaire – era como a cada dia ela desse a René (sim, ele continuava a dormir a seu lado) a esperança de uma Ledinha antiga, gordinha, feliz, solícita, que não existia mais. 
          Passaram-se assim dez anos.
          Até que um dia.
                                     
                               (FINAL DO SEGUNDO TEMPO)


Esse dia foi um sábado. Por essa época os filhos já estavam na faculdade, Leda devia andar pelos 45 anos, René tinha dez anos mais. Fazia bom tempo, o início efusivo de mais uma primavera – pela janela aberta da sala de jantar vinha um estranho som de tamborim e escárnio, saudade de vizinhos de algum Carnaval passado.

           O café se desenrolava no comum das coisas, exceto pelo traje esportivo do pai e do filho,  preparados para a corrida semanal. A filha, Sandra, estava de penhoar, meio languidescente. Leda presidia a mesa, como sempre, olhar ausente no corpo presente. Raul pediu ao pai que passasse a manteiga. René ergueu a mantegueira a meio, mas o objeto desejado de repente mergulhou, solto, despencando bem no meio da mesa num estouro do cristal, criando derrames de leite, café, cereais.  A copeira – parece que desta vez se chamava Rosenilda – enfiou a cabeça pela porta da cozinha, enquanto René, de braço súbito retraído, deslizava pela cadeira que tombava ao solo despejando, numa rejeição, o corpo pesado do patrão.
             Era um derrame, que atingia todo o lado direito de René.
          No momento seguinte os estuporados Raul, Sandra, Rosenilda, ouviram um grito agudo: era Leda que se precipitava sobre o corpo tombado do marido – sacudindo-o, chamando por ele em uma voz rouca,  recuperada com esforço após dez anos de silêncio. Leda como que entrando  em si por um momento (vinda de muito longe, se diria), tomando providências, que chamassem uma ambulância, um médico, os parentes, o que estavam esperando?

                                     (EPÍLOGO)

 As coisas como se passaram dali por diante não puderam ser descritas de maneira muito exata pela família, atingida assim de súbito por dois acontecimentos que rompiam o  seu cotidiano de rotina – mas, sentiam todos, eram  dois movimentos complementares e sincronizados, se diria, de forças opostas: o mergulho progressivo do marido nas sombras, a recuperação gradual da energia consciente da mulher, à procura da plena luz.

           E assim foi, sucedeu. Leda, que foi aos poucos, enquanto o marido ainda estava no hospital, tirando a cabeça das névoas. (Aurora, aquela cunhada lá de trás se estão lembrados, nunca tinha ficado muito convencida daquele silêncio decenal de Leda, dizia que ela era muito farsante, isso sim). Parecia que Leda recuperava uma vontade de viver. A energia que se retirava do corpo retorcido e semi-paralisado de René ia toda, todinha, para a mulher.


           No seguir das coisas, René obteve alta do hospital – ou antes, foi entregue, mudo e lesado, aos cuidados da família. Sem esperança de recuperação. Não havia sido só um derrame localizado, diziam os médicos, mas a manifestação de uma doença degenerativa. Quinze dias mais tarde, quando o levaram para casa,  Leda já recuperara o controle doméstico, dava ordens para a dieta do marido, procurava interpretar seus desejos – ele, mudo. Era a sua vez de ficar mudo. Às vezes os filhos surpreendiam nele um olhar vivo, de ódio,  para a mulher.

    Três semanas mais tarde, Leda recuperada, bem vestida e bem penteada, se assumira totalmente, telefonava para as amigas, para os pais – até para a cunhada Aurora. E movia o mobiliário, removendo René  para uma confortável cama no quarto de hóspedes - contratava até enfermeiro permanente, que o assistisse. Na sua mudez.

   No mês seguinte,  Leda, Ledinha, esbelta, elegante, animada, já assumira o lugar do marido na empresa, saía diariamente para o trabalho, voltava tarde. Nunca deixou, porém, de ir dar uma olhada em René,  antes de se recolher ao seu quarto.

Passaram-se mais dez anos. Os filhos saíram de casa, casaram, tiveram filhos e tudo. René morreu. Leda sobreviveu mais vinte e cinco anos  e desligou-se da esfera terrestre perto dos 90 anos, nos braços de uma bisneta.

 Dizem que quando a família limpou o apartamento depois de vendido, no fundo de um gavetão atulhado de coisas foi achado um objeto estranho, bem embrulhado - um cinzeiro barato prateado, descascado,  com uma esmaecida inscrição dourada.                

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        (Do livro Faróis estrábicos na noite, Bertrand Brasil, Rio, 2009) 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

LA PIETÀ

                                            
 LA PIETÀ, meu conto mais famoso, figura no livro “O Caos na Sala de Jantar”( Editora Moderna-SP-1978) e também no livro “Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão” (DBA-SP-2004) e em várias antologias, no Brasil e no exterior, tendo sido traduzido para o alemão, o italiano e o espanhol. Em 1994, quando o Brasil foi país-tema da Feira Internacional de Livros de Frankfurt, esse conto foi escolhido pela comissão organizadora do evento para inaugurá-lo, com leitura em todas as rádios alemãs – foi extraído de uma antologia publicada em 1986, FRAUEN  IN  LATEINAMERIKA 2 , com organização e tradução de Kurt Meyer-Clason (o tradutor de Guimarães Rosa e de Gabriel Garcia Marques).
            La PIETÁ Tem sido considerado por muitos, tanto no Brasil como no exterior, como “um dos mais belos contos em língua portuguesa”. Em 1986 o grupo da Escola de Teatro Macunaíma, de São Paulo, adaptou-o e encenou-o, com um elenco de dez alunos, no Teatro da Universidade de São Paulo.

 


         ________

LA  PIETÀ

 

Cidade do Vaticano (21) – La Pietà”, a primeira escultura religiosa do Renascimento italiano, famosa em todo o mundo e venerada no Vaticano por fiéis e milhões de peregrinos, foi  parcialmente destruída...

Olhou para a barriga, sorriu. De manhã tão cedo. O ônibus da Rocinha sacolejava.Tinha deixado o café pronto para quando o João acordasse, no barraco.

Contanto que nasça bem. Vai ser um menino. João, também. Ou Francisco, que nem meu pai. O ônibus sacode, dá uma dor aqui, tanta pedra, estrada ruim, não vai chegar nunca lá embaixo? Bobagem, faz mal não.A cunhada Maria sofreu até desastre da Central, de sete meses.E o menino nasceu.
      
 ....parcialmente destruída. O ato de vandalismo ocorreu às nove horas da manhã, diante da multidão que fazia fila diante da célebre obra que....

No  hospital do Instituto uma fila enorme de mulheres de barriga avançando para o mundo, as mulheres, as mulheres todas e suas barrigas, tristes barigas, as mulheres se debruçando em suas barrigas. Na seção que tinha um nome esquisito. Damiana soletrava a custo, “gi-ne-co-lo-gi-a...obs-te....”

...que é uma das mais célebres expressões da cultura humana.

     
O médico gritou:
       - Você aí, não está ouvindo? Avança logo que tenho mais o que fazer.Tira a roupa.
       Tira a roupa. Tira a calça.Anda.Deita.Levanta.Tira a calça.
        A enfermeira gorda sacudiu-a:
        - Tira tudo.
        O toque doeu. Ela deu um gemido.Bruto.Que nem o João,quando queria ela deixava mas pensava vai fazer mal prô menino...Abria a perna.Deixava. O João. O médico.Estripada, pensou. De perna aberta prô mundo, sua puta.
        - Levanta, o que tá pensando?
        - Elas pensam que a gente tem o dia todo. Não vai ser fácil não, vou dizendo logo.Se sentir dor, venha logo.De carro.Se puder.Onde mora?
        - Na Rocinha.
        - Hum! ..Mande entrar a seguinte.

 O pavoroso atentado abalou profundamente os meios artísticos, religiosos, culturais. Sua Santidade, que acabava de regressar de Castel Gandolfo....
      
 Foi atacada pelas costas. Sentiu a pancada forte, assalto, pensou,virou, viu o irmão, os olhos vermelhos, tinha bebido de novo, avançava novamente de mão aberta.
          - Tônio!
         Rolou com a bofetada.
         - Toma, sua puta, foi casar com negro, eu disse que ainda te pegava, sua puta sua vaca sua sem-vergonha, toma!
         - Tônio...o menino...
         Toma, toma e toma, soco descendo nas costas,ai, na barriga não, Tônio, tem piedade, meu Deus.
        Ele armou a mão novamente. Armou o pé. Bêbado. A gente começava a correr, dos barracos.
       - Desgraçado, batendo em mulher prenhe.
       - Segura ele.
       - Vaca, tu nunca prestou, casada com aquele negro!
       - Segura, ele mata ela.
       O João mata ele. Me mata.Se ficar sabendo.
       - Leva depressa para o Pronto Socorro, a criança pode nascer.
       Os solavancos do caminhão muito pior que o ônibus mas vai levando vou chegar logo em tudo brutalidade bruto bruto tudo, os homens, o mundo.Seu menino, seu menino alí...Ai, tá doendo, morreu, não, tá mexendo, meu Deus, ai meu Deus, o que eu mais queria, o menino...
        - Não chora não, dona. Já  estamos chegando.Aquele desgraçado devia mais era morrer.

O  autor do atentado, um húngaro chamado Lazlo Toth, era geólogo e residia na Austrália. Já tinha morado antes na Itália, tendo sido expulso pelas autoridades por.....

Seu irmão.Seu próprio irmão.Não queria que casasse com preto. Nem com ninguém. Tinha ciúme, sempre tinha, de qualquer namorado. Queria ela pra ele só, pegava ela de noite quando era menina, pegava, ela tinha medo e deixava, era puta era puta tinha dormido com o próprio irmão Deus castigava abria a perna pro João pro médico, não valia nada, mas tinha o menino, sempre tinham dito a Damiana tem um jeito com criança, seus sorrizinhos, seus narizinhos, úmidos bichinhos.
        O médico do Pronto Socorro era mocinho, não tinha cara ruim que nem o do hospital do Instituto. Mocinho assim, ia entender de barriga grande?
      -Parece... Não. Acho que não aconteceu nada.Quantos meses?
      - Sete.
      - Não.Não tem sangramento.Dores?
      - Nas costas. No braço. Tá tudo moído.
      - Isso é das pancadas que levou. Deu parte?
      - Fugiu. Não sei quem era.
      - Levou na barriga?
        Ela não sabia direito.Tinha caído. O médico olhou para a enfermeira.Depois disse:
      - Faça os curativos, dê um calmante forte. Olha, você vai para casa e fica muito quietinha, ouviu?
        Uma ruga em sua testa..
      - Procure ficar deitada. Mas não fique preocupada não, o seu bebê vai nascer direitinho. Se sentir alguma coisa...
      - O senhor faz o parto?
         O sextanista riu.
      - Não. Só dou plantão aqui.
        Pôs a mão no ombro dela.
      - Fique sossegada.Coitadinha.Fique sossegada. O bebê vai nascer bem.
        Ele não tinha aberto ela pelo meio estripada como os outros. Não tem sangramento. Ele olhou, tocou. De leve. Tinha homem que tocava de leve, com jeito, nem doía. Tinha. Mas não era para ela. Abaixou a cabeça, entrou no caminhão.
       - Tá tudo bem, podemos voltar. O senhor é muito bom.
        - Não é nada não, dona. Pobre tem de ajudar o outro.  Eu pegava aquele desgraçado que fez isso e matava.

O  desalmado concentrou a sua fúria assassina na figura da Santíssima Virgem, cujo braço esquerdo demoliu completamente.

       Uma dor bem dentro dela, parecia, bem no coração. O médico bonito tinha sorrido, era homem da praia do Leblon ou de Ipanema, decerto tinha namorada magrinha de biquini roxo. Passou a mão no rosto picado de varíola.
       O pontapé, ele tinha perguntado, o pontapé não, acho que não, senão o menino tava morto. Que sorte o pontapé não pegou. Uma vez, ela tinha onze anos. Ele pegava  ela de noite ela não tinha coragem de dizer para a mãe, ele disse que matava se ela contasse. A primeira vez tinha doído muito ela tinha sangrado. Não tem sangramento. Ela tinha sangrado – sentada na cama, o sangue correndo. Onze anos. O sangue era quente. Era a primeira vez que tinha pensado o sangue, como o sangue é quente, meu Deus. Não conta que eu te mato.Deixava.Se abrindo.Puta. Uma vez pensou que parece que gostava.Pensou isso e ficou batendo a cabeça na parede.Fez um galo. A mãe dizia:
       - Essa menina é doida.
       Só com ela acontecia, decerto. Não prestava. Uma noite ele tinha dado um pontapé nela, tava caindo de bêbado, sua puta, tinha dito. Ela tinha onze anos.
       Não se preocupe, viu, coitadinha, não vai acontecer nada, minha filha. Tinha dito assim, minha filha. Bem devagarinho. Modos de gente rica educada falar. Grudou as mãos  no assento até ficarem roxas.
       - Tá sentindo alguma dor, dona?
       - Não. Não. Tô bem.Tô só pensando.
       - Melhor não pensar.
         Melhor não pensar.Minha filha....Fique bem quietinha, ouviu? Se sentir alguma coisa... Um modo de falar. De sorrir para ela. Um modo de falar que tava doendo mais dentro dela, parecia, que os socos do irmão, os tapas na cara que levava do João, também.

 Em seguida o energúmeno atacou o rosto da Santa Virgem, quebrando o nariz e os olhos.

 Entrou no barraco devagarinho, o João estava emborcado , tinha bebido também, quem sabe? Deitou devagarinho, com medo. Uma dor funda, vontade de chorar dolorida, Deus, ah Deus meu, existia Deus? Deus castigava assim? Ela, o João, o menino...Mas o menino se mexia dentro dela...Fique quietinha, ouviu? Ficou quietinha, ouvindo, na noite. Uma asa dentro dela se mexia , seu menino – carícia vinda de dentro. Ficou olhando o teto, muito parada, olhar fixo. Esperando. Tinha medo de dormir, tinha medo que o menino...Os olhos ardiam, esperando.Esperando.

   
  (Passos, passos. Que vinham – que cresciam de todos os lados. Energúmenos de punhos erguidos. Uma enorme vaga. Fúria assassina. De todos os cantos da terra. Um martelo. Enorme martelo erguido, vinha.
       Na noite da antecâmara  pontifícia, um grito foi ouvido.
       O Primeiro Camareiro olhou para o Segundo Camareiro – Sua Santidade devia estar se debatendo com um pesadelo.) .
      

 A dor chegou de repente. Como um grito, enorme vaga erguendo-se dentro dela, no seu ventre. Quando tudo estava assim parado. A dor chegando dentro do sono de calmante. Partindo-a. Enorme machado caindo sobre ela.
      - João!... O menino....
        Iam descendo o morro. Não tinha mais ônibus, naquela hora.Barranco. Morro.Feito de tantos pequenos morros. Pedra. Tanta pedra. O morro é duro. O morro era contra ela. O mundo. Áspero.É a vida. Que nem sangue escorrendo quente na perna. Que sentia. A pedra dura o morro duro sempre descendo subindo sempre sempre, pedra doendo na sola fina do sapato, vida de pobre.
       Numa curva da estrada viram o mar de repente, lá embaixo espalhado, espelho. Quieto dormia, o mar?
       Ia clareando quando chegaram no Leblon.
      - Agora a gente pega um taxi. Dez cruzeiros deve dar.
       Fizeram sinal. O motorista ia parando. Olhou para eles e acelerou. Outro, num carro verde e grande, todo lustroso, passou de longe, virando para olhá-los, ela toda curvada, a dor tomando-a. Pobre não ajuda pobre. Ninguém tem pena. Motorista de taxi não era pobre, que nem eles.
        Um fusca azul parou.
      - É prá já, dona? Entra que a gente dá um jeito.
        Tem gente boa. Tem gente muito boa, ainda.
         O mar via-se de longe, uma pontuação alí no fim de cada quadra, azul parado calminho, assim de manhãzinha. Azul é cor de menino. Cidade tão cedo. Onde está a gente da cidade? Dormindo, acordando. Meu filho vai nascer, pobrezinho. Acho que o bruto acertou o pontapé, não sei bem, caí, não vi mais nada. Ou foi sôco, só. Mas tá vivo e se mexendo. Às vezes é alarme falso. Não quero que chegue nunca no hospital. Meu filho é só meu. Por enquanto está aqui, guardadinho. Só meu. Não deixo sair.
       Praia de Botafogo. O mar é cinza parado.
       Praia do Flamengo. Verde a palmeira, o mar lá longe no aterro parece tão verde em cada lugar o mar é difeente isto dentro de mim esta dor quando vem é uma onda é como uma onda, eu vou sentindo ela subir vai me afogar, eu o menino o João o táxi, tudo afogado. Morto. Vem vindo. O mar vermelho. O mar pode ser vermelho.Vermelho e quente como sangue.

...Finalmente um jovem bombeiro lançou-se  sobre o iconoclasta , tomando-lhe o martelo. Petrificada diante do horroroso atentado à cultura humana, e presa de repentino terror, a multidão fugiu diante do ato blasfematório. Algumas mulheres desmaiaram, outras soluçavam e gritavam.
  
   ...um túnel de dor, parecia, onde mulheres gritavam e gemiam nas enfermarias, quantas mulheres, pareciam sozinhas jogadas no mundo para dar à luz, que nem ela. As batas de um branco encardido. No branco, a dor. Num canto uma menina, quanto anos, treze? Parecia onze. Imóvel.Tinha morrido? Mas os olhos se abriam e fixavam o teto , e quando a dor vinha era como uma coisa concreta viva que a menina de olhos parados estivesse vendo, monstro que vinha se formando em si, dentro dela, enorme. Menina—onze anos? Deve ter sido estupro.
        ... seguindo no corredor, seguindo a sua própria dor, e a das outras, difícil andar, a enfermeira abriu uma sala, umas doze camas, tira a roupa, dores regulares, perguntava. Tira a roupa. Tira tudo.Veste essa camisola, espera, deita, espera, espera, espera.
         Ninguém com ela. Sózinha.
         Entrou um médico, mal-humorado.
      - Mais uma. O movimento vai ser daqueles, hoje.
         Ela não tinha culpa, queria dizer para o médico. Não tinha culpa de ter vindo naquele dia, desculpasse, não queria dar trabalho.
         Levantaram o lençol, ela abriu as pernas, dócil. Fechou os olhos.
         A porta, cada vez que abriam, trazia intervalado um grito longo e feio, pontuando o branco.A menina? – pensou. Animal. Porco sangrado.Vida. Suja.Feia.          
      - Cesariana. Quanto antes, melhor. Providencie.
          Saíram. A porta que se abria. O grito, pontuação vermelha, no branco.
         Damiana ergueu-se no cotovelo, olhou o relógio: eram sete horas e quinze minutos.Da manhã.
        
A preciosíssima  estátua foi encomendada a Michelangelo em 1498 pelo cardeal Jean Villiers de Lagrolaye, que desejava instalá-la na Igreja dos Franceses, em Roma.
         

Mar. Que vinha, enorme, se formando onda. Vagalhão agora crescendo...
          ( ...longe, na Itália, um martelo).
         ...mar vermelho, nas suas cadeiras cinta apertando, uma dor enorme, às vezes acabava brusca, ficava muito tempo sem nada, tinham esquecido dela?
          Resvalava no branco.  O tempo passava, tinham esquecido? Deviam saber mais do que ela, não tinha coragem de perguntar.Enfermeiras entravam, saíam, voltavam. A porta, o grito longe, vozes. Tinham esquecido dela sozinha, o João lá fora que estava fazendo, também não podia falar se falasse o João matava ela, culpava ela mais o irmão, puta, o sangue escorrendo quente na perna de onze anos, a menina que ia parir, fazia tanto tempo, tudo fazia tanto tempo...
       O relógio do corredor marcava: três horas. Da tarde.
       A enfermeira levantou o lençol, examinou, a outra sacudiu os ombros:
      - Não sei, disse que era cesariana e foi embora...
      Dentro da dor grande as outras menores, o corpo doído surrado, um corpo que ardia todo, parecia, um corpo que nos dezessete anos tinha vindo num sofrimento, numa dor só, parecia, barranco sujeira sangue pisado lama dezessete anos , quantos anos mais...

A  veneranda  imagem conta, pois, 474 anos. Para o trabalho da sua restauração os peritos trabalharão com as medidas exatas tiradas de uma cópia da estátua, feita há 30 anos. Ao encomendar a obra, o cardeal escolheu um tema que era praticamente desconhecido até então na arte religiosa. As únicas representações plásticas de uma mãe chorando o seu filho...

...nasceria mulato? Nasceria? Sete meses – apalpava a barriga, asa leve, ainda vivia, não precisava ser operada? .. O mundo todo era um menino chmado Cesário, ia chamar Cesário por causa da cesariana, sete meses também cria. Criado com muito mingau. E o seu leite ia ser forte...

...de uma mãe chorando o seu filho morto datavam da antigüidade clássica, como as estátuas de Vênus e de Adonis, e de Mennon.

 ... e sua mãe tinha tido leite forte para os filhos. Era o que tinha salvado eles, nem todos, alguns. Filho de pobre é assim, tem de ser de porção, senão não cria. Que nem gado. Filho de rico  nasce dois,três, cria tudo...
       (Martelo.
          - no ponto preciso em que a energia se transforma em gesto: um grito. Olhou a velha beata se ajoelhando diante da estátua, ela tinha bigode, lei é schiffosa teve vontade de gritar, viu de relance o gesto do guia estendendo disfarçado a mão para a gorjeta do americano...
         num gesto seco levantou a mão : armada)

 De repente o gritou chegou, e era mais forte do que tudo, ela fechada, no grito, na dor, na dor ineludível, ali, precisa, ela fechada em sua  própria barriga, o quarto sem janelas, só portas, quatro portas, uma confluência de todos os caminhos do mundo, ela estripada mundialmente universalmente Damiana estripada, estuprada, mar vermelho explodindo dentro dela, a dor explodida, me acudam.
          Chegaram as enfermeiras, agüenta é assim mesmo, faz caminho, alguém disse “ respira” como quem atira uma toalha, respirar como?
          ( Mar.
             Mar-te-lo
             Mar-te-lo.
             O braço. O nariz. Os olhos cegos. Agora. Es-ti-lha-ça-dos).

 A notícia correu célere pela Itália, como um rastilho de pólvora, suscitando incrível emoção. O Santo Padre correu à Basílica e dirigiu-se até o célebre grupo escultórico, diante do qual se ajoelhou, afogando lágrimas.
        
 ...estilhaçada em mil pedaços, a sua dor que era o mundo e quem era que assim gritava, ao longe, mas era ela, era ela gritando, não grita, agüenta, disseram, quem? O quê? Outra voz, “ não vive”, alguém tinha dito ‘não vive”, quem? o quê? Quando? O grito, a sala desventrada, portas abertas todas ela puta aberta o irmão pegava o soco o grito o barraco faz frio faz calor faz sangue...

...afogando lágrimas. Depois, já serenado, interessou-se pelo autor do delito: “ É  realmente louco ou simula loucura?”...

...empurravam levando para onde não sabia mais, o grito, essa pessoa que gritava o tempo todo e que devia ser ela, aquela dor era impossível, não existia, e uma voz disse “não compreendo... não fizeram...” machado, enorme, martelo, martelando assim na  barriga.....” cesariana?”
     
 Preocupou-se logo o Sumo Pontífice em saber se os danos eram irreparáveis. O especialista em restaurações do Vaticano, o eminente Professor Deoclécio Redig de Campos, que é brasileiro, disse que todos os cinqüenta fragmentos das partes danificadas serão recolhidos e catalogados e que...
      
...esquartejada, porco sangrado, animal, amarravam suas pernas, suas mãos, uma cruz, ela era uma cruz.

...a estátua será reparada: “Temos os fragmentos do braço e do nariz. Para o olho será muito mais difícil”.

...respira, respira fundo, estreito túnel onde vou, onde vou morrer? Respira que a dor passa, a pessoa tinha deixado de gritar ou gritava mais longe, um pano no nariz, respira, tudo mais longe, o teto abaixando, respira, “acho que é tarde demais”.

 “De qualquer modo o grupo perdeu sua integridade original.Como reunir de novo os fragmentos miúdos de mármore, e inclusive a sua poeira?” – perguntou o perito mundial Giulio Carlo Argan.

...respira fundo, fórceps, não sei, criança prematura, posição difícil....

“La Pietà”  foi a única obra que Michelangelo firmou, porque considerou que se aproximara da perfeição que sempre procurou, diz a lenda. A História, porém.....

... uivo rouco retomado, tudo tem que acabar, não é possível...

 ... afirma que o artista só a assinou por ter sido a estátua atribuída a outro escultor.
        
           - Agora. Faça força.
         - Vamos, um pouco mais. Só isso. Agora.
         Para fora .Cuspido. Parido – enfim. A dor parada, ela olhou. Dependurado pelos pés como um franguinho ensangüentado, um franguinho assassinado, o seu...
         
Pegou então de um cinzel e esculpiu seu nome...
          
.... o seu menino, o médico sacudia, batia com força, cinzento e inerme o menino permanecia, não bata no meu menino, tão pequenino, não bata no meu menino, no meu menininho, no meu filhinho, não bata, não bata em mim, não me machuquem, não machuquem meu filhinho....

...seu nome bem visível no peito da Virgem : MICHELANGELO BUONARROTI  FECIT.

 E então trouxeram. Eles reunidos, o médico, as enfermeiras, trouxeram: o seu menino. O seu menino morto. Um pedacinho de carne a mais, com manchas de sangue pisado no rosto. Trouxeram o menino. A enfermeira, ao colocá-lo nos seus braços, virou a cabeça para o lado.

O grupo  está  talhado num só bloco de mármore de Carrara e mede 1,74 m de altura por 1,94 m de largura.

Nos braços rígidos, sem embalo, o filho, ela, ambos, para sempre fixos, duros – pedra. Para sempre.

E o escultor Giacomo Manzu, autor da Porta dos Mortos de São Pedro, inaugurada em 1964 por Sua Santidade o Papa Paulo VI, ao saber do nefando crime, prorrompeu em soluços: “É  o atentado mais grave contra a civilização e a cultura que se cometeu até agora. O mundo exige um castigo exemplar para o culpado.”
                     



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sábado, 28 de setembro de 2013

PONTO DO NUNCA-MAIS


    
     
       O senhor olhe, repare bem. É bem ali, do lado de quem vai prá Minas. Ali, naquele escurinho de mata. Ali, depois do morro, dá pra ver. Dizem que muito escuro. Foi ali que as coisas aconteceram. Naquele tempo que essas histórias aconteciam. Que as pessoas vinham de longe, cavalhadas, depois foram ficando - alguns. E Perdões começou a nascer. Tempo dos avós, dos bisavós de toda essa moçada que anda por aí. Tá sabendo? O povoado, foi acontecendo - de gente que passava. Nunca teve cara de coisa-com-acontecimentos, igreja no morro, casas, nada disso, gente passava, vinha, ia, alguns sentavam pé, casavam. Outros vinham casados, ou com amásia, mulher-dama, ninguém sabia. Era um lugar perdido do mundo, Perdões - quer ver que o nome também era uma coisa assim, de perdão? Talvez. De perdão, de não-sabimento, de crimes cometidos mundo afora, de casal fugido, de gente meio cigana meio índio arribado, acho. 
                   Para lhe contar, de verdade, só sei da história de meu avô Francisco Leme. Seu Chico. Minha avó Ana. Essa história, lá pelos longes de 1880,90 - que me contaram, coisa de tias, no borralho, noites de inverno que aqui na serra são brabas, sabe. Esse, seu Chico, que sim, que sabiam das suas andanças, sua gente era daqui, paulista, era mocinho bom, filho de coronel dos lados de Sorocaba, paresque. Veio passando por aqui brigado com o pai, coisa de mocidade, nenhum crime, nem nada, aqui se amoitou, tinha algum dinheiro comprou casa, negociava com tropa, paresque, não sei bem, essas coisas de contado no borralho a gente nunca soube direito, eu nem conheci. Era homem de poucas falas, dizem, como a gente daquele tempo, não era de se meter com a vida de ninguém, solitário, não gostava de baile, nem de jogo de carta, nem bebia. Dizem que sempre ficava, de tardinha, aqui fora da casa, sentado num banco de madeira, que nem a gente, agora.  Olhando fixo para aquele ponto que eu mostrei para o senhor, no meio da mata.
                   Que um dia encilhou cavalo ligeiro, arranjou embornal, cantil pra viagem longa, por esse mundo. Se largou a trote solto, sem despedir de ninguém. A casa fechada, ninguém sabia o que fazer. Passado quase ano, repontou no horizonte, vindo do lado do Norte, do muito-que-longe, parecia - daquilo que nunca se via, do mais além do Ponto do Nunca-Mais, seria? Vinha com Ana, quase-menina, de trança solta e olhar de sol, vinham ambos sujos e cansados, muito cansados, dizem - seu Chico nunca falou nada com ninguém, eu lhe disse, Perdões era terra de perdões, ninguém perguntava, ninguém sabia, todos viviam. Apeou, deu a mão para Ana, amarrou os cavalos, abriu a casa e ali moraram 40 anos.
                 Ah, mas não no sem-mais, assim, não. Foram se estabelecendo, enricaram, seu Chico fez venda grande dessa que tem de um tudo, castiçal e vela, cordame, faca, sapato, rifle, lampião, até sabonete vindo da Capital, água-de-cheiro - o senhor sabe. Comprou fazenda e gado, tiveram onze filhos, um por ano, criaram oito, deu instrução. Era meio arredio de igreja mas até padre ajudou a trazer, pra aumentar o comércio de domingo com a caboclada que vinha pra missa. Acho que era o homem mais importante do povoado, casa de muita gente, casa alegre, aberta, que foi crescendo daquela casinha do início da vida, se alargando, cabendo mais gente, pomar, criação, até festa de São João com mastro e fogueira.
               Mas tinha ainda aquele costume, ficava aqui na porta principal da casa, essa que vai do alpendre para a sala, olhava fixo para aquele ponto ali, já sabe, no escurinho da mata, o ponto do Nunca-Mais, não sabe? Punha cadeira aqui, onde o senhor está, assim, sentava na beirada dela, meio ansioso, olhando longe.
               E foi aí que um dia as coisas aconteceram. Depois de uns 30, 40 anos. Meu tio Chico Filho já tinha uns 38, tia Mariquinha uns 36, os outros seguindo, maior parte casada com filhos, eu era pequeno - como lhe disse não me lembro de lembrado. Só de contado. Pois, veja só: uma tarde de tardinha anoitecendo quase, de repente seu Chico levantou de golpe, corpo inclinado pra frente, franzindo o olhar para aquele lado - o do escurinho da mata, aquele do lado de Minas, no horizonte, já sabe. Dois cavaleiros vinham se chegando. Não no galope, não, não como quem quer chegar logo. Vinham a trote pausado, emparelhado, corpo alto, como quem sabe que vai chegar - como quem quer marcar chegada, eis. Vieram reto, sabiam o destino? Sabiam o que iam encontrar? Nunca se soube.  O que se sabe é que seu Chico se levantou teso, num repente remoçado mas o cenho carregado. Passou a mão na cinta, como quem procura arma. Ele que nunca andou armado. E que gritou seco, pra dentro da casa, mas sem voltar a cabeça: “Nhãna!”. Que minha avó veio de dentro, enxugando a mão no avental. E parou hirta, no umbral.
                Dos dois cavaleiros, as pessoas muito falaram, depois. Embora quase ninguém tivesse visto. Digo, gente de fora da família, compreende. A família, não sei se viu bem. Se inventaram algumas coisas, depois...quem sabe? Meu tio Afonso, que estava no jardim da frente da casa, disse que eles não vieram vindo, assim, como todo mundo vem. Que apareceram de repente. Que parados, em silêncio, sem se apearem. Que era gente já de uma certa idade. Como o pai. De cara fechada e tostada de sol. Que gente de muito longe, seria. De olhar fixo no velho, no alpendre. Que demoraram para apear, amarrar os cavalos, vieram subindo devagar a pequena rampa diante da porta principal da casa. Bota com espora, ressoando. Que os cachorros se lançaram, num alarido, que eles nem se importando, avançando no meio deles, do pastor alemão e dos dois mateiros. Que o Pai se afastou da porta, em silêncio, eles entraram, sem tirar o chapéu. Olharam para minha avó, de relance, passaram.
                Que meu avô abriu com gesto largo a porta das cerimônias, aquela da sala de visitas que ninguém usava nunca. Depois moveu a cabeça para tio Afonso, num gesto de que se afastasse, fechou a porta. Ficaram muito tempo trancados. Que minha avó Ana, muito branca, correu para o quarto, ajoelhou chorando no pé da cama, agoniada, que para as filhas, minhas tias Branca e Nina que eram solteiras e ainda moravam na casa e perguntavam que foi Mãe, ela só sacudia a cabeça, sem poder falar.   
                  O que se passou depois, no em seguida mesmo, é meio nevoso, ninguém sabe, e depois de tanto tempo. Paresque passado tempo meu avô abriu a porta da sala, passaram ele e os cavaleiros diretos para a sala de jantar, meu avô chamou uma negra mandou servir janta para eles, vinho até, comeram os três em silêncio, com educação, mas os homens sujos ainda da viagem, as botas largando um pouco de lama no tapete. E minha avó chorando no quarto - e as moças sem entender, comendo na cozinha, estranhadas. Depois os viajantes foram dormir naquele quarto que as casas daquele tempo sempre tinham, o quarto dos viajantes, pronto para quem passasse, e com porta que dava para o alpendre, não para a casa. Que no dia seguinte começou um dia normal com as negras soprando o fogão de lenha, esquentando água, fazendo café com quitanda, e que então minha avó Ana saiu do quarto do casal, já aprumada, o olhar fixo, sem dizer nada, que as filhas perguntavam e então Mãe e ela só olhava para elas e ia indo pelo corredor. E caminhando, caminhando como se sua alma tivesse sido roubada. Como se não-mais. E que ela e meu avô se olharam, entendidos. Durante muito tempo. Depois ela seguiu pela sala, atravessou o alpendre, se colocou entre os dois cavaleiros e foi andando, e já havia um terceiro animal que tinham mandado arrear, uma égua de boa andadura onde ela montou de lado, mas desenvolta. Era ainda uma mulher rija e bonita, de uns cinqüenta e poucos anos, ainda de trança longa e basta, enrolada em coque no alto da cabeça.  
                 E se foram, os três, não sei se desaparecendo aos poucos, no horizonte. Ou se de repente se desmanchando na paisagem, no escurinho da mata, ali, naquele ponto ali, do Nunca-Mais, eu não lhe disse? O que se disse depois, o que a família veio contando, não sei se é verdade ou se história arranjada para explicar o inexplicável - mas faz algum sentido. O sentido que a gente hoje quer dar para essa gente antiga que não falava muito, dizem. Que tudo, nas suas vidas, era cor de silêncio e mistério, e no abafado e triste viviam, comiam e dormiam, pariam, morriam - sem que muito se soubesse. O que se soube, e isso certo, foi que meu avô foi secando, depois que Ana se foi. Que parecia esperar por ela, sempre, que ficava ansioso na beira do banco de madeira, na porta da sala - que morreu de tristeza, de saudade irremediável dela. E que os filhos foram passando, de geração em geração, e passarão, a história meio adivinhada de um moço paulista - de gente boa, filho de coronel de Sorocaba - que um dia veio pra estes longes, nos confins com Minas, que gostou do povoado, que fez casa. Que um dia viajou para longe, viu Ana menina de tranças perto de um riacho, falou com ela, se enamorou perdido, e ela também, que se amaram descuidados, feito animais no pasto - mas que os irmãos dela, eram dois,suspeitosos, lhe vieram de faca em riste. Que não sei quem da família, ou um negro da casa, tinha contado que seu Chico tinha no flanco a marca deixada, da peixeira. E que ambos haviam vindo, fugindo, no disparo - até esta cidade de Perdões, para viverem felizes, uns 40 anos...
                Agora, nesta lenda, neste segredo de família - o que mais vou dizer, eu que nem sei? Porque, nessa história toda, tem uns poréns, uns como-é-que, que a gente não entende. Por que passados 40 anos, ou quase? Por que tudo assim como em um ritual, gestos marcados, não parece?  sem falas nem rastros, só as decisões nunca sabidas, uma espécie de dever cumprido, de assim-deve-ser, não é? Uma coisa de honra, sei lá. Como é que minha avó, que reconheceu os irmãos, que emendou as duas histórias sem mais, as duas pontas depois de 40 anos...como é que meu avô, que amou Ana a vida inteira daquele amor desesperado, que até morreu de amor por ela, a entregou sem mais, sem luta, acovardado, para aqueles irmãos assassinos?
               Não faz sentido.
               Olhe, quer saber de uma coisa? No distante do tempo, quem pudesse ver e ouvir, estar presente naquela sala de visitas, naquela noite fatal para minha família? Naquela sala de jantar onde os viajantes, acolhidos com amabilidade, por certo comeram uma lingüiça frita e saborosa, com bastante farofa e batata frita, e beberam tudo com aguardente da boa, e sobremesa de requeijão e goiabada, depois certamente puderam se lavar, tomar café forte, e depois, quando todas as crias da casa e as moças Branca e Nina haviam se deitado, os três homens, de acordo, por certo tinham chamado minha avó Ana para uma conversa...e ela se chegasse, tímida, sem jeito, mas já passado o medo dos irmãos, e curiosa inquirisse, da família deixada, dos pais...tão longe, tanto tempo...
               E então, um dos sinistros irmãos, já curtidos de idade também eles - e quem foi que disse que seriam sinistros? Quem foi que viu, realmente, a marca da peixeira, o cenho carregado, o gesto de procurar uma arma, do meu avô - que nunca teve arma?...Já curtidos de idade, os irmãos, e um deles, o mais velho com certeza, com ar grave, e ponderado, ou até um tanto suplicante, olhasse para Ana e lhe dissesse assim, “Ana, você sabe, nossa mãe...ela está tão velha”.... e todos ficassem um momento calados, compreendendo, e completassem, para si, que a velha estaria morrendo, que os irmãos, passado tanto tempo haviam vindo procurar Ana para fazer-lhe a última vontade, queria ver a filha,enfim....
               Que tudo assim se resolvesse, no comum da história de  tantas famílias, naquele tempo de Brasil maior, mata mais densa estradas escassas comunicação nenhuma, o senhor não acha? Ainda hoje, tanta gente mandando recado para irmãos, filhos nunca mais vistos, por esse Brasil afora, as famílias que se perdem e se dissolvem no nada, não existem no todo-dia essas histórias?
                Bem, mas há coisas que ninguém nunca entendeu, mesmo - que nunca mais minha avó Ana, aquela que ainda tinha tranças espessas e negras enroladas em coque no alto da cabeça, aquela tão amada de meu avô que ele até morreu de tristeza, por que ela nunca mais voltou? Nem uma palavra, nem nada, nem foi procurada, será? Que ela tenha deixado toda a família, e os oito filhos, a maioria casada, os netos, a casa, a pessegada por fazer na cozinha, o bordado no bastidor, as filhas que lhe perguntavam que foi Mãe, tão assim?
                Não sei. Afinal, como vou saber essas coisas mal-contadas do tempo antigo, já se passaram 50 anos, 60 quase - o que sei, é esta inquietação em mim, esta vontade persistente de saber, e o meu sonho desta noite, com meu avô Chico Leme, com minha avó Ana, eu senti a dor deles dois, daquela separação, como se fosse minha e eu estivesse ali, neles, como é que a gente explica um sonho persistente com gente tão esmaecida no tempo, tão inexplicável?
                Mas acordado, agora, neste alpendre desta casa tão antiga, conversando com o senhor, veja, há uma coisa concreta - ali, está vendo? Aquele ponto preciso, no escuro da mata, no mais escuro no escondido, lá do lado da fronteira de Minas. Aquele ponto de onde ninguém volta, ninguém voltou, o ponto que dá medo a todos - o Ponto do Nunca-Mais.
                Compreende?

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      Do livro Faróis estrábicos na noite (Bertrand-Brasil 2009)