sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A ÚLTIMA CEIA DE 1964 (Ou OS TESTÍCULOS DO ANTONIO HOUAISS)

                                     “Um que come do meu prato, eis o que me entregará
                                                                                     (Mateus VI,23)


       
– Vocês já provaram testículos?
   Disse de repente Antonio Houaiss lá pelas onze.

     Isso acontecia sempre. Era a hora, naquelas reuniões do seu apartamento em Tudor Place, em que H. nos brindava com seus surpreendentes pratos exquis, sua paixão – petiscos, coisas de gastrônomo requintado, qualquer chicória preparada por ele era manjar dos deuses, nunca provada antes nem depois. E era o todo do seu ambiente, o requinte intelectual e material – os quadros, coleção, quadros brasileiros na maioria, alguns com dedicatória do pintor. E os tapetes persas, e aquele sofá preto – que era feito apenas de uma porta e algumas almofadas, dizia ele. E a ânfora grega do século VI A.C. E  todas aquelas coisas, seu personalismo, seu bom gosto, inscritas na trajetória daquele homem pequeno, muito feio, muito inteligente, o filho de um alfaiate árabe de Copacabana, um pequenino homem, um gourmet com apenas um terço do estômago, um diplomata que...
      – Testículos?
Nos grandes momentos históricos, há de repente um momento em que a gente sente que está vivendo um momento histórico. Que algum dia, quando se quiser contar aqueles dias, uma frase haverá, a expressão de um rosto, uma música, um cheiro, qualquer coisa – da qual nos recordaremos, como se fosse um ponto atingido, o ponto da estranheza, um ponto em que se diz aqui estou eu vivendo isto e esta é uma cena de romance. Na concreção do detalhe, e às vezes do mais insignificante e até ridículo detalhe, nos fixamos – é nele que conseguimos nos definir, muito mais tarde, dizer, ah! assim éramos, assim éramos nós, naquele tempo...
     Assim éramos nós, atingidos, tensos, infelizes, naqueles primeiros dias de abril de 1964. Um bando de diplomatas até a véspera engajados na política externa independente de um Governo que em noite recente dissera resistirei até a morte,  e que no dia seguinte aparecia sorridente e acenando na porta do avião que o levara para o Uruguai.
     Sim – vivíamos a História, seus repentes, sua traição. Naquele momento nos sentíamos órfãos, desamparados. Como cantores de ópera que, no meio de uma ária  importantíssima, sentissem que repentinamente a orquestra parara – o gesto esboçado, o sopro na garganta, a palavra cortada... de repente alguma coisa aconteceu – o tiro de pistola no meio do concerto, de que falava Stendhal?
         Surpreendidos em nossa representação. Diplomata, o que representa, eis aí. Parados no meio do palco, nosso recital que ia tão bem, tão brilhantemente orquestrado ( Congratulations, Mrs. R., your husband is the most brilliant diplomat in the Second Commitee...) tão fluente e com libreto tão interessante a ópera, nós, geração privilegiada, geração juscelinista, geração desenvolvimentista, nós que acabáramos de ganhar um mundo todinho nosso, onde ordenaríamos uma sociedade enfim justa, achávamos, ancorados na nossa pretensão...
      – O golpe militar no Brasil atingiu a coluna cervical da América Latina – diziam-nos os colegas estrangeiros, dando-nos os pêsames.
        Era esse luto, então. Essa apreensão. O que aconteceria, com o país, conosco? Estávamos ainda com os trajes da cena anterior, a garganta seca esperando, no momento seguinte o que, quê regente, quê orquestra, quê música?
        E comíamos testículos de boi, regados a Château-neuf-du Pape, congraçados, uns poucos de nós, naquela noite de abril com saudações de primavera, no refinadíssimo apartamento do nosso líder de pensamento esquerdista, em Tudor Place, entre ânforas gregas, tapetes persas e livros raros. E todos nós sentíamos, aquele era um pré-momento, a transição, como se configurariam para nós as coisas, no momento seguinte? – nós, pela própria situação profissional colocados exatamente no meio das históricas coisas, à mercê de telex governamentais ríspidos e objetivos, cada momento, cada gesto, cada movida de telex uma ameaça possível e definitiva, remoção, demissão, pescoço cortado, exílios?
          A minha ansiedade de mãe recém-parida verteu-se numa quilometral conta telefônica Nova York-Genebra – justamente na véspera do golpe meu marido viajara, para participar da sessão anual, na ONU européia. Localmente, tentava me valer da experiência dos próprios H., em matéria de reviravoltas políticas – já eram vezeiros nessas coisas. A. H. sofrera um primeiro expurgo, ainda no tempo de Getúlio – presidente-eleito (normalidade democrática? é o que se diz, basta ver isso para pensar que não...). Na mesma leva, nos anos 50, que também afastara da carreira durante sete anos João Cabral de Mello Netto.Em 1956 ambos haviam ganho uma batalha judicial contra o Itamaraty. Naqueles primeiros meses de 64, Antonio Houaiss havia sido promovido a Ministro. Sua mulher, Ruth, dizia:
           – Não pode ser. Se o A. foi promovido, alguma coisa vai acontecer no Brasil...
         Aconteceu.
         O apelido de Ruth era Cassandra.
         Mas Ruth não era a única a achar que alguma coisa devia acontecer no Brasil.
        Havia, sim, aquele feeling no ar, aquele desconforto.Desde o trágico 22 de novembro de 1963, o assassinato de Kennedy. O fortalecimento dos regimes militares na América do Sul. Da direita.
       Então naquela véspera da traição, naquela histórica última ceia, éramos poucos e avulsos, uns seis ou sete, porque logo, atingida pelo raio golpista, a Delegação se cindira – os deste lado e os do lado de lá, o desconforto, a asperidade do momento – as máscaras que caíam. O bonde da História que descarrilava. Muitos tentavam se equilibrar a todo custo, agarrando-se aos balaústres, jogando os colegas para os trilhos. Alguns conseguiram: cresceram dedos em riste, cochichos, por trás das portas. E foi na Delegação do Brasil junto à ONU, em Nova York – definida como célula comunista – que se instalaria, logo mais, o primeiro Inquérito Político-Militar (IPM) do Brasil.
         A véspera da traição.
(E o que o atraiçoou comia à mesa com ele, no banquete dos testículos – de boi. Na ceia dos aflitos).
       Entre os devotos discípulos, comia à mesa um colega diplomata que chamarei de Gilberto Torres Melo, naquele tempo chefe interino de nossa Delegação. Era um homem feio e pesadão, e para rimar, garanhão. Cada ano aparecia com uma nova mulher, que apresentava como “Senhora Torres Melo”, um dia acordava, olhava para a cara da mulher ao seu lado e se perguntava o que esta Fulana está fazendo aqui? E despedia-a. De casamento mesmo tivera um ou dois, e um filho que lhe sobrava do outro lado do mundo. Houaiss e Ruth eram seus amicíssimos de longa data, os que lhe davam estabilidade, os que lhe lembravam o aniversário do longínquo garoto, de quem eram padrinhos. Os que lhe emprestavam dinheiro até, se dizia. Nas curtidas noites de Tudor Place e papo socializante, Torres Melo era dos mais assíduos, embasbacado de entusiasmo com os brilhantes intelectuais que lhe ornamentavam a Delegação.
          Partilhávamos naquela noite um gosto de exílio antecipado – e era uma despedida. Um banquete ritual de condenado. Porque Antonio Houaiss  já recebera ordem para deixar Nova York e assumir outro posto consular, no Canadá. Era o dedo amigo do Embaixador Azeredo Silveira, naquela época chefe do Departamento de Administração do Itamaraty, que o queria proteger, tentando retirá-lo da cena. (Não houve na realidade tempo para essa tentativa de se esconder o A. H. – um mês mais tarde, já em Montreal, acabou sendo chamado ao Brasil, submetido a inquérito e novamente cassado).
         Mas no dia seguinte Carlos Lacerda – que passaria à História como “O Corvo” – ainda empolgado pelo golpe que ajudara a tramar, ainda Governador do Rio, ainda “revolucionário” (depois seria também robespierramente guilhotinado), chegava para uma visita oficial a Nova York. Torres Melo revigorado, recuperado da depressão da véspera – tal o poder dos testículos de boi –, desdobrou-se, recebeu-o regiamente, todo sabujo e lambuzo. Num banquete teceu os maiores elogios ao Governador e à gloriosa Revolução que eliminara a Hidra Vermelha.
        E mandou a secretária ligar para os H.: eles que desculpassem, contava com a sua compreensão, mas daquele momento em diante deveriam considerar-se proibidos de comparecer ao recinto da Delegação. E suspendia inclusive a festinha de despedida que estava sendo preparada pelos funcionários – prevista no cerimonial da Casa. Porque tudo, no estreito mundo do Diplomata, rege-se segundo um estrito protocolo – até os assuntos sexuais e de família, como tive ampla oportunidade de verificar na própria escorchada pele.
          No caso de transferência de posto, prescreve o protocolo algumas palavras, mesmo alguma emoção permitida no lencinho bordado de alguma antiga funcionária – quando o chefe em questão foi “tão bom”. E a solene entrega de uma bandeja de prata, que varia em peso e tamanho, rigorosamente, com o cargo ocupado pelo diplomata. Naquele caso, sendo H. Ministro, o peso seria razoável.
        Não houve bandeja. Desfalcada ficou a coleção dos H.: Torres Melo, aquele amigo da véspera, aquele que comera do mesmo prato dele, renegava-o – proibia a entrega do troféu.
        Nem conhecia mesmo, o A. H.
        E se segurava, com todas as mãos, à Carreira, ao cargo. Morreu Embaixador, aposentado, pensão assegurada.
          Como se vê: testículos, são coisa importante.
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(Do  romance autobiográfico inédito

 MEMÓRIAS IMPERFEITAMENTE DIPLOMÁTICAS)

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