Cecilia
Prada
Na letrinha redonda das meninas-família eu
escrevia que quem era o presidente da República era o Doutor Getúlio Dornelles
Vargas, continuava a ser o doutor Getúlio Dornelles Vargas, cuja continuidade
no poder ninguém parecia estranhar. Vagas memórias de comícios em que eu ficava
lá embaixo, esfregando o nariz nas pernas dos adultos. De comitês no Centro do
Professorado Paulista, onde senhoras de tailleur e chapéu de feltro – década de
30– faziam longos discursos inflamados enquanto eu, única criança nesses
lugares, dormia a sono solto, só acordando estremunhada na hora dos aplausos.
No ar, dispersas frases,em blocos, “Revolução de 32” , “legalidade”,
“Constituição” – que seria aquilo? Nas casas, capacetes e obuses enferrujados
escondidos no armário, retrato de algum sobrinho jovem e morto, uma bandeira
amortalhada em um gavetão. Perguntei o que era, me disseram, em devoto
sussurro: “A bandeira paulista que o Getúlio mandou queimar.”
Mas o principal medo, na família, era o dos comunistas. Eles sim,
viriam, matando criancinhas, invadindo as casas, enfeiando as moças, condenando-nos a passar fome, colocando-nos
diante de pelotões de fuzilamento. O caldo da fervura dos anos 30 engrossava-se
com a Guerra Civil espanhola – que na família católica repercutia como o horror
dos horrores porque os padres e freiras eram obrigados a fugir da Espanha.
- Sim, e
fogem levando seu ouro escondido nos santos!
A voz,
indignada, era de Dona Anita, espanhola e mulher do seu Muñós, que era aos meus
olhos de medo o único monstro comunista que eu conhecia – terrível, falava
alto, dava murros na mesa enquanto discutia com meu pai, que era católico
fanático de comunhão diária e que partilhava com meu tio Egídio, seu irmão, a
opinião de que todos os comunistas deveriam sim, morrer na cadeira elétrica ou
fuzilados. Então, naquela noite de discussão, eu sentadinha no degrau da
cozinha da casa do seu Muñós, morria de medo porque ele decerto ia matar meu
pai. E queria ir embora logo, e acho que fomos mesmo, e nunca mais voltamos. E
seu Muñós tinha um filho que era muito gordo e andava de motocicleta, uma coisa
potentíssima e barulhenta que me fazia também muito medo. Francisco, se chamava
ele, e morreu moço, do coração, e eu pensava “bem feito, quem mandou ser
comunista”.
Mas um comício em particular
me deu um medo muito maior. Pude presenciá-lo melhor, não mais “lá embaixo”,
vendo pernas de pessoas e amassada entre elas, mas do balcão de uma sala nobre
do Colégio São Bento, onde me levara meu pai.
- Por que todos estão vestidos de preto?
Devo ter perguntado meio alto e meu pai fez
sinal para ficar quieta. Eu continuei, de olhão arregalado, observando aquelas
pessoas estranhas, de porte rígido, inteiramente vestidas de luto, por que
seria? até camisa preta fechada, e os padres beneditinos em seus hábitos também
negros, e depois, no fim, por uma porta lateral entraram rígidos portadores das
bandeiras inteiramente negras do Fascio,
recebidas com aplausos entusiásticos. Empinadas, as bandeiras se vangloriaram
um instante, se pavonearam satisfeitas, para depois, num gesto teatral
ensaiado, baixarem-se todas ao mesmo tempo. De tanto susto, quase gritei. E
escondi o rosto na calça de meu pai - que também parecia ser negra.
Frases que captava na conversa dos mais
velhos. Minha mãe, contando:“...Então nós fomos ver o comício da Praça da Sé,
com a menina, e saiu tiroteio, e só tivemos tempo de subir num bonde que estava
passando e fugir”. Li, em um dia de janeiro de 1994, a notícia da morte de
Fúlvio Abramo, o qual, diziam, “tivera o poder de deter, organizando um
comício, a marcha do integralismo entre nós”. Teria sido esse o comício aludido
por minha mãe como o “comício do bonde”?
Toda
quinta-feira realizavam-se na Cúria Metropolitana, na rua de Santa Teresa,
palestras de Apologética. Fui levada a muitas, dormia num banco enquanto meus
pais faziam pós-graduação espiritual. Mas devíamos, na ida e na volta do Largo
São Bento (onde tomávamos o bonde para casa), atravessar a Maior Praça do Mundo
– havia sempre carros, rodando em fila ou aos magotes, ameaçadores, levava um
tempão para se poder atravessar correndo, em tempo sem semáforos.Uma praça que
nos comícios criava vozeirões terríveis ecoando nos alto-falantes. Até uma,
grossa, enérgica, muito máscula, conclamando:
- Mulheres de São Paulo!
Era Dona Carolina Ribeiro, a diretora da
Escola Normal Caetano de Campos. É homem,
mãe? – a única mulher a discursar lá em cima, com os homens. Que todos,
pareciam sempre estar muito zangados, brigando, esgoelando, e eu achava que de
repente iam começar a se matar.
Não devia estar errada. O “comício do
bonde” acabou em tiroteio e mortes, mas a família cristã salvou-se a tempo.
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( Do livro “Entre o itinerário e o
desejo”, Editora Scortecci, SP-2012)
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