segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

GUIMARÃES ROSA I - Tardes no Itamaraty

Cecília Prada

A memória de João Guimarães Rosa permanece como encantamento maior de nossa literatura, 45 anos  após sua morte. Sua obra  é um legado de riqueza inextinguível em que as gerações sucessivas continuarão a se inspirar. Mas não foi seu único legado.Para todos que tiveram o privilégio de conviver com ele – como eu própria - também ficou a memória de um ser humano acima da média, caminhando alto na trilha da espiritualidade, da bondade,do saber.
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Conheci Guimarães Rosa na década de 1950, justamente nos anos em que lançou suas grandes obras.  Fui eu própria diplomata de carreira, de 1955, ano em que prestei o vestibular para o Instituto Rio-Branco do Ministério das Relações Exteriores, até o final do ano de 1958. Então, quando, formada e atuante na qualidade de Cônsul de Terceira Classe, ou Terceiro Secretário (no masculino, mesmo), casei com colega de carreira, fui forçada, por ato inteiramente anticonstitucional do MRE, a demitir-me.  Casada, permaneci no Itamaraty até 1973, ano do meu desquite – o que resulta em 18 anos passados na Casa de Rio-Branco, com muitas vivências e estranhezas que ora revivo e registro.
Meu primeiro encontro com o escritor deu-se no próprio vestibular , ao  tê-lo como examinador na prova oral de Cultura Geral. Ele era então Ministro de 2ª classe. Tenho uma vaga lembrança de ter sido argüida sobre literatura grega antiga e moderna arquitetura brasileira. Passei. Nos anos seguintes participei muitas vezes de descompromissadas conversas com ele, na hora do lanche da tarde, no Bife de Zinco – o modesto restaurante do Itamaraty que tinha essse apelido pela sua cobertura de zinco e em oposição ao mais refinado restaurante do Rio na época, o Bife de Ouro.
Rosa ia levando aqueles anos longe de qualquer agitação social, empenhado no trabalho literário.Gostava da rotina sem sobressaltos, do tempo que lhe sobejava para dedicar-se a seus escritos. Sua filha Vilma nos revela no livro Relembramentos detalhes pitorescos no cotidiano do gênio, as meninices retidas no homem maduro que tinha sempre uma reserva de jarrinhas de mocotó e doce de leite de Minas no cofre de sua Divisão – em meio a uma multidão de contos inéditos.
Alto e corpulento, com cabeça e pés que pareciam pequenos em comparação com o resto do corpo, caminhava de maneira muito característica, como se escorregasse, silenciosamente. Como se pairasse acima da mesquinhez cotidiana, de um modo sutil, como quem não quer se fazer notar. A anacrônica gravata-borboleta que usava sempre era uma espécie de signo característico, sublinhando o rosto afável. Diria dela Carlos Drummond de Andrade em um poema-necrológio que lhe dedicou: “Projetava na gravatinha/ a quinta face das coisas/ inenarrável narrada?”
Havia na sua discrição uma espreita,parece, da vida, das peculiaridades da linguagem, dos gestos e expressões de futuros personagens. Uma curiosidade benévola, uma ingênua curiosidade de rapazinho - melhor, de artista. A identificação com o personagem Miguilim, de um de seus contos, ocorria. Gostava de sentar-se com as datilógrafas, com os funcionários menores, com os diplomatas iniciantes, como eu – simplicidade ímpar em uma instituição que sempre primou pelo elitismo, pelo racismo, pelo mais feroz machismo. E em um tempo de rígidos protocolos, quando alguns chefes chegavam a censurar os colegas mais jovens pelo desgostoso hábito de cumprimentarem as datilógrafas.
“João” (queria ser chamado assim) cumprimentava com a mesma afabilidade risonha contínuos, faxineiras,datilógrafas, embaixadores. À sua mesa a conversa se desenrolava mansa, levada pela sua mineirice.Parecia passar ao largo da carreira diplomática. Mas isso não era verdade.  Amava a carreira que lhe dera viagens,o tempo vivido no exterior que lhe permitira especializar-se em línguas (conhecia mais de 20), em culturas exóticas – das quais extrairia os elementos que permeiam toda sua obra. Pela sua notável atuação na chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, o Governo brasileiro deu seu nome, em 1969, a um pico de 2.150 metros descoberto na fronteira entre o Brasil e a Venezuela.
Sua atuação como Cônsul em Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial confirma a excepcionalidade do seu caráter. Apesar da política de simpatia mantida até 1942 pelo Governo Vargas pelo Eixo, e dos obstáculos oficialmente impostos à entrada de judeus em nosso país, Guimarães Rosa manteve sempre uma orientação inabalável de favorecimento à concessão de vistos para os fugitivos. Tarefa perigosa, para a qual foi estimulado pela secretária que se tornaria sua segunda mulher, Aracy Moebius de Carvalho– usando o que denominou de “um estratagema diplomático”, ele emitia o visto omitindo a religião do portador. Como contaria mais tarde Aracy, ele costumava dizer: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência." Em 1985 o Estado de Israel, reconhecido, deu o nome do casal Guimarães Rosa a um bosque nas encostas de Jerusalém, e no Museu do Holocausto encontram-se depoimentos das pessoas salvas por eles. Ainda durante a guerra, Rosa demonstrou heroísmo ao entrar, após um bombardeio, no prédio que abrigava o Consulado do Brasil, para salvar arquivos sigilosos. Assim que saiu, o prédio desabou totalmente.
Durante os anos que passei no Itamaraty, tive ocasião de testemunhar sua timidez, sua modéstia. Ao cumprimentá-lo, em 1958, pela sua promoção a Embaixador, confessou-me sua inquietação por ter de escolher um posto no exterior, quando só queria ficar sossegado, escrevendo. Foi mantido no cargo, e nele permaneceu tranqüilo, comendo seus docinhos, fumando muito (era um tabagista inveterado, o que certamente lhe apressou a morte) e escrevendo muito.
Naquele mesmo ano, Reynaldo Jardim, meu ex-colega da Cásper Líbero e editor do  Suplemento Literário do Jornal do Brasil, pediu-me para entrevistá-lo. O embaixador me recebeu com a maior gentileza e a mais simpática recusa, usando a terceira pessoa para falar de si próprio: "Filhinha, o Guimarães Rosa não dá entrevistas. Mas não se preocupe, o Guimarães Rosa vai lhe indicar pessoas que falarão sobre ele, para você realizar o seu trabalho". Indicou dois de seus grandes críticos, Manuel Cavalcanti Proença e Oswaldino Marques, a cujos depoimentos juntei o do poeta Alberto da Costa e Silva, que era meu colega de turma do Instituto Rio-Branco, e consegui fazer matéria de folha dupla para o Suplemento.
Nesse encontro, a maior surpresa me esperava no fim. Quando me despedia, ele me reteve um momento mais, meio encabulado: "Escute,o seu jornal às vezes publica contos. Até faz uns concursos.Você acha que publicariam um conto meu? Penso às vezes em mandar algum, mas não sei...". Aquilo parecia até uma brincadeira, uma ironia de Rosa. Mas era tão sincero aquele grande homem à minha frente, que só consegui balbuciar: "Mas, Embaixador...o senhor...ora, imagine!", e coisas que tais.
Dei o recado ao Reynaldo, que publicou alguns de seus contos mais “difíceis” – de Tutaméia, creio.
                        
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