domingo, 1 de dezembro de 2013

LEDA LEDO ENGANO


   

Era uma vez.
Eram duas vezes.
Porque essa coisa de uma vez não existe. Todos nós que temos nossas  vivências já sabemos que as coisas do mundo sempre têm um ir e vir, umas duas faces, enleios e retornos, um dia é da caça, etc, e o que aqui se faz aqui se paga, coisas assim.
Esta é a história de Leda, a doce Leda que amigas maldosas apelidaram de Ledinha Ledo Engano – porque vivia meio gordinha, meio  feliz, com o marido bonitão, René, extrovertido, divertido, garanhão, que a enganava. Ela se deixava docemente enganar, e continuava – dizia – a ser uma mulher feliz, sem problemas, casa bela e farta e apartamento na praia, dois carros, dois filhos adolescentes, duas empregadas, gozando dessa felicidade assim toda dupla e dourada.

          Até que um dia. 
Não era nem ao menos um dia extraordinário, aquele. Mera quarta-feira, que é o dia mais com cara de todo-dia da semana, mais sem acontecimentos. Mais com cara de  mata-borrão,  de refogado de chuchu. Um dia sem urgência alguma, a quarta-feira, porque é só a véspera da quinta, e a quinta – que já tem aspirações a quase-fim-de-semana – ainda é, em si, meio chocha, sem grandes expectativas. Então, nessa quarta-feira em que as coisas deveriam andar como sempre, de repente não andaram –desandaram. Desandaram bem na hora do jantar, que era assim processado, quase um ritual, na casa: marido e mulher faziam questão de jantar com os filhos, no máximo às 8 horas, e ainda jantavam bem, com copeira servindo, comida mais leve do que o almoço, mas comida – e não essas frescuras de lanche, de improvisos, de não comer carboidratos à noite,  nada disso. Leda e René cada qual no seu lugar à mesa, o filho, a filha, alguma música leve, comentários sobre o dia . Podia até passar por uma família feliz. René às vezes atrasava, chegava mais lá pelas 9 horas, mas todos esperavam, ele se desculpava, coisas da empresa, negócio de última hora, já se sabe. Leda, Ledinha Ledo Engano, bem que reparava – a cara larga de René, bonita, satisfeita. Nos cabelos, às vezes pontas molhadas ainda – de chuveirada recente.

             Havia outros indícios que René nem se preocupava mais em esconder, urgências súbitas de negócios, recados “não me esperem, vou chegar muito tarde, estou retido aqui no escritório”. Houve mesmo um fim de semana... enfim, quem não viu, não conhece as manhas de marido infiel? Marido bonitão, regalado, continuando sua vida como se fosse solteiro, mas sem deixar faltar nada à família, vivendo todos no luxo e no engano. E a mulher...bem, a mulher. (A história é tão banal, que se poderia parar por aqui. Se não fosse, bem, se não fosse aquela quarta-feira. Que era exatamente a segunda, de um mês de setembro).

            Quem não chegou na hora certa foi Ledinha Ledo Engano. Por coincidência em dia que René chegara cedo, pelas sete horas, estranhando a ausência da mulher mas achando que seria coisa de shopping, compras. René tomou uma chuveirada ortodoxa, ensaboando todos os seus pecados. Não há registro histórico de que tenha cantado no banheiro. Diante do espelho esfregou o corpo sarado de quarentão, apalpou desgostado uns vestígios renitentes de olheiras. Deu um suspiro. Voltando ao quarto resolveu descansar um pouco nos lençóis convidativos, de cetim lilás. Pestanejou logo. Para acordar estremunhado, vinte minutos mais tarde, no quarto penumbrento – vazio de Ledinha, notou.  Onde estaria? Dez para  as oito. Cinema com alguma amiga, vai ver a Cinira, aquela faladeira, pensou. Irritado. Na sala de jantar Raul e Sandra estranhavam a ausência da mãe. A copeira não sabia explicar, disse coisas vagas, vai ver o trânsito, não ela não disse onde ia, não sei. Mas ela não telefonou, perguntou René saindo do quarto. Não senhor.

        Criara-se algo novo, naquela rotina de família feliz – uma cara torta de pergunta elevando-se no ar. Que logo mais frutificaria em ramificações de preocupação, muita irritação,  que coisa é essa, ela nunca.... etc. Os meninos resolveram voltar para a TV do living, a copeira sumiu na cozinha, René coçou a cabeça. Dez minutos mais tarde a copeira enfiou a cabeça pela porta da sala, devo servir? Não. Vamos esperar Dona Leda, deve ter sido o trânsito, ela saiu de carro, não saiu? Saíra – conferiu o zelador, no interfone.

        René passou para o living, olhou enjoado para a telinha, abriu o jornal e mergulhou. Estou com fome, pai, disse Raul. Eu também, filho. Consultou o relógio, oito e quarenta – mas afinal, o que aconteceu? A cara torta e zombeteira da pergunta foi se transformando em careta azeda, em perplexidade, desconcerto – o vazio no estômago que acontece na hora da tragédia. Vou ligar para a casa da Vovó, disse Sandra, não, não sabiam, o que aconteceu? Família toda, tios, avós, até para a casa da Cinira, da Valéria, para o cabelereiro do shopping que ficava aberto até as dez – já eram as nove e meia.

           Polícia? – alguém pensou alto.

           Não, que é isso, não é o caso, que exagero, etc. Olhe, Rosileide – era o nome da copeira – já são dez horas, pode servir o jantar, não adianta nada os meninos ficarem com fome, vamos ter calma. René olhou para o prato servido de picadinho de carne, purê de maçã e arroz à grega,  viu a dimensão da sua súbita falta de apetite. Os meninos começavam a comer quando tocou a campainha da porta e todos se entreolharam – eram os pais de Leda, aflitos. O telefone tocou. Era a Cinira perguntando se Leda voltara. Depois foi a vez de chegar Aurora, a irmã de René, com o marido – enquanto o jantar precário se equilibrando no hábito continuava, alguns se chegaram à mesa, formando grupo.
           Coro de tragédia grega?

Às  onze horas, pontual como um capricho do Destino, ouviram a chave se remexendo na fechadura – Leda Ledinha Ledo Engano fazia sua entrada (que planejara triunfal, gran  finale de ópera) mas que era só desconcertante: tornara-se em algumas horas uma mulher alta e magra, de cabeça erguida e olhar desafiador. Uma mulher que brandia, decidida, um pequeno objeto brilhante, contundente, na mão direita...
          (Não, não era uma faca. Não, nem revólver, arma alguma, não).
          ... mulher meio bêbada, dava para se ver, que avançou sem muito titubear até o meio da sala de jantar, passou os olhos pelo grupo de coristas perplexos, foi até seu lugar na extremidade da mesa – o prato continuava esperando por ela - antes de sentar encarou bem fixo René, na outra ponta da mesa, parado, de garfo no ar. Leda estendeu o braço direito, colocou no centro da mesa um objeto luzidio , prateado, sua arma: um cinzeiro barato, com vestígios de cinzas sob os quais podia ser lida (em alto e bom som) a inscrição em caracteres dourados: MOTEL  PARADISO.    
           

Se isto fosse um conto, poderia terminar por aí – anedótico e operístico.   Ou então com um final grotesco, de mau gosto – o marido traído sacando do bolso (que bolso? não havia trocado de roupa depois do banho? haveria bolso suficiente para arma – e que arma, etc? - na camiseta Lacoste, na calça do agasalho?) e abatendo a tiros (sim, teria de ser revólver, a arma, porque sem estampido o grotesco fica viúvo e chocho), abatendo a desgraçada que cairia de borco sobre o prato do picadinho diante da platéia estarrecida, naquela noite de uma quarta-feira tão igual às outras.     
           Etc.
           Mas isto não é um conto. É uma história verdadeira. Que prosseguiu, e durante muito tempo, em um enredado de circunstâncias  que de engraçado mesmo não tiveram nada.
                                
                                  (FINAL DO PRIMEIRO TEMPO)


A cena da véspera, com coristas e copeira, e até cozinheira que tinha vindo espiar, desmanchara-se em embaraço e discrição, mediada pela cunhada, Aurora, que pegou levemente no braço da protagonista conduzindo-a ao quarto e ajudando-a a se deitar. René, que ficara rubro, partindo para ameaçador  na hora do cinzeiro, foi detido pelos que é isso dos homens, enquanto os adolescentes se refugiavam nos seus quartos. Quando todos foram embora, René  arremessou-se ao quarto  com ânsias de explicação. Mas Leda dormia pesado, e ele resolveu apanhar uma coberta e  aninhar-se no sofá da sala como fazem os maridos dos filmes norte-americanos. Marinando  sua raiva para o dia seguinte.

           Mas a quinta-feira amanheceu armada em tempestade meteorológica, feia, rugindo  no acordado da manhã.  O que poderia ser até fundo sonoro apropriado para o desencadear de fúria reprimida – de algum casal. (Recurso que seria certamente usado por escritor incipiente, ou diretor cênico). No caso concreto o efeito foi  o contrário, por causa de um cidadão nipônico que de repente entrou nesta história, não anunciado, o desgraçado. 

         Expliquemos: é que na hora em que a família (menos Ledinha que continuava no quarto) tomava café da manhã, cada qual mais apressado  que o outro, a tempestade atingia o máximo. Um raio caído ali pertinho, em árvore que enfeitava a esquina, interrompeu súbito a energia do prédio. Só que René tinha que sair a todo custo, porque marcara encontro bem matutino – 8 horas - com o senhor Takeo Kamayashi, nada menos do que o CO de uma multinacional - e essa gente, já se sabe, não deixa de comparecer pontualmente chovam raios e trovões, e o homem só passaria 24 horas em São Paulo e....

            Não, você não vai sair assim, absolutamente, mas o que é isso, quer morrer, e como é que vai descer dez andares, é muito perigoso pode cair alguma árvore e os raios... René parou de repente estatelado – no meio da sala. Ninguém tinha dito isso. Leda, não estava ali, continuava no quarto? Essa teria sido, até a véspera, a expressão da solicitude de Ledinha por ele, como fora durante  dezesseis anos, imutável, segura. E agora essas coisas terríveis acontecendo – e a presença implacável daquele cidadão super-importante e nipônico ao fundo, esperando por ele entre raios e trovões...

           De repente, René se sentiu órfão. Toda a ruminação ressentida na véspera pela mulher, sua humilhação, se transformava em garra – gelada - que ia se enfiando, lenta e terrível, por dentro dele. (Coitado, que nem sabia ainda o que o esperava).

          Não agüentou mais – que se danasse o nipônico, o importante era Leda. A explicação necessária, saber o que tinha acontecido. Entrou decidido no quarto de dormir.

          Ninguém sabe com exatidão o que se passou entre o casal. Se René obteve a tal da explicação. Se Ledinha  mentiu, ou se disse a verdade – e mesmo essa “verdade”, pequenina e circunstancial, qual fosse nunca se soube. Ficou transformada em mistério para o imenso apetite da família desdobrado,  pois evidente que houve, pelos séculos afora em que todos ainda viveram, ruminações do que tinha – ou não tinha acontecido – com Leda no Motel naquela noite (e na vida, em geral). Uns diziam que sim: que ela realmente tinha um amante secreto; ou que pelo menos fora realmente ao MOTEL PARADISO naquela noite da pré-tempestade, parece até (maldavam) que fora alguém conhecido ao acaso, na rua, súbita fúria explodida como a de criança rebelde contra o charmosão e infiel René.  Outros diziam que não: que ela, tão submissa sempre, tão fiel e zelosa da família... que nada! Que tudo não passava de bazófia, para se exibir perante o mesmo charmosão e infiel mencionado acima. Afinal, um cinzeiro de motel barato não é difícil de se obter. Não prova nada.

           De certo mesmo, a família só ficou sabendo os indícios, os vislumbres que conseguimos ter, todos nós, das pessoas. Por mais próximas que estejam. Uns fiapos de acontecimento, umas suposições. Os pequeninos mourões, marcos exteriores de nós e dos outros, onde amarramos nossa (precária) experiência humana.

            No caso de Leda, diga-se logo que o que se soube, o que se ouviu dizer foi que a partir daquele exato momento ela – dizem – nunca mais falara. E que se manteve anos a fio presa no seu quarto a maior parte do tempo, movimentando-se apenas pelo apartamento, sem participar da família. Era como se naquela quarta-feira, entre cinzeiros baratos, tempestades, picadinhos, cunhadas e copeiras curiosas, algo houvesse se  rompido de vez dentro dela. Sem qualquer consideração por marido, por filhos, mesmo. 

            Bem – tratamento? Sim, é claro, uns mil. Mil e um até. Tentaram de tudo. O que dizem é que depois de tantas pílulas da felicidade que os magos da consciência lhe impingiram goela a dentro seu estado acabou piorando – enfim: aos poucos todos se acostumaram com Leda, Ledinha que parecia atestar, com sua mudez, que não era mais Leda Ledo Engano. Era uma sombra familiar, uma mulher bonita, bem vestida e arrumada – eu já disse que se cuidava? Sim, levantava todos os dias, se vestia, ia presidir o café da manhã da família. Presidir é o certo – aliás presidia todas as refeições, sentava-se ereta, impassível, muda, à cabeceira. Nem ao menos pedia para lhe passarem a manteiga, como fez aquele outro mudo célebre, Baudelaire – era como a cada dia ela desse a René (sim, ele continuava a dormir a seu lado) a esperança de uma Ledinha antiga, gordinha, feliz, solícita, que não existia mais. 
          Passaram-se assim dez anos.
          Até que um dia.
                                     
                               (FINAL DO SEGUNDO TEMPO)


Esse dia foi um sábado. Por essa época os filhos já estavam na faculdade, Leda devia andar pelos 45 anos, René tinha dez anos mais. Fazia bom tempo, o início efusivo de mais uma primavera – pela janela aberta da sala de jantar vinha um estranho som de tamborim e escárnio, saudade de vizinhos de algum Carnaval passado.

           O café se desenrolava no comum das coisas, exceto pelo traje esportivo do pai e do filho,  preparados para a corrida semanal. A filha, Sandra, estava de penhoar, meio languidescente. Leda presidia a mesa, como sempre, olhar ausente no corpo presente. Raul pediu ao pai que passasse a manteiga. René ergueu a mantegueira a meio, mas o objeto desejado de repente mergulhou, solto, despencando bem no meio da mesa num estouro do cristal, criando derrames de leite, café, cereais.  A copeira – parece que desta vez se chamava Rosenilda – enfiou a cabeça pela porta da cozinha, enquanto René, de braço súbito retraído, deslizava pela cadeira que tombava ao solo despejando, numa rejeição, o corpo pesado do patrão.
             Era um derrame, que atingia todo o lado direito de René.
          No momento seguinte os estuporados Raul, Sandra, Rosenilda, ouviram um grito agudo: era Leda que se precipitava sobre o corpo tombado do marido – sacudindo-o, chamando por ele em uma voz rouca,  recuperada com esforço após dez anos de silêncio. Leda como que entrando  em si por um momento (vinda de muito longe, se diria), tomando providências, que chamassem uma ambulância, um médico, os parentes, o que estavam esperando?

                                     (EPÍLOGO)

 As coisas como se passaram dali por diante não puderam ser descritas de maneira muito exata pela família, atingida assim de súbito por dois acontecimentos que rompiam o  seu cotidiano de rotina – mas, sentiam todos, eram  dois movimentos complementares e sincronizados, se diria, de forças opostas: o mergulho progressivo do marido nas sombras, a recuperação gradual da energia consciente da mulher, à procura da plena luz.

           E assim foi, sucedeu. Leda, que foi aos poucos, enquanto o marido ainda estava no hospital, tirando a cabeça das névoas. (Aurora, aquela cunhada lá de trás se estão lembrados, nunca tinha ficado muito convencida daquele silêncio decenal de Leda, dizia que ela era muito farsante, isso sim). Parecia que Leda recuperava uma vontade de viver. A energia que se retirava do corpo retorcido e semi-paralisado de René ia toda, todinha, para a mulher.


           No seguir das coisas, René obteve alta do hospital – ou antes, foi entregue, mudo e lesado, aos cuidados da família. Sem esperança de recuperação. Não havia sido só um derrame localizado, diziam os médicos, mas a manifestação de uma doença degenerativa. Quinze dias mais tarde, quando o levaram para casa,  Leda já recuperara o controle doméstico, dava ordens para a dieta do marido, procurava interpretar seus desejos – ele, mudo. Era a sua vez de ficar mudo. Às vezes os filhos surpreendiam nele um olhar vivo, de ódio,  para a mulher.

    Três semanas mais tarde, Leda recuperada, bem vestida e bem penteada, se assumira totalmente, telefonava para as amigas, para os pais – até para a cunhada Aurora. E movia o mobiliário, removendo René  para uma confortável cama no quarto de hóspedes - contratava até enfermeiro permanente, que o assistisse. Na sua mudez.

   No mês seguinte,  Leda, Ledinha, esbelta, elegante, animada, já assumira o lugar do marido na empresa, saía diariamente para o trabalho, voltava tarde. Nunca deixou, porém, de ir dar uma olhada em René,  antes de se recolher ao seu quarto.

Passaram-se mais dez anos. Os filhos saíram de casa, casaram, tiveram filhos e tudo. René morreu. Leda sobreviveu mais vinte e cinco anos  e desligou-se da esfera terrestre perto dos 90 anos, nos braços de uma bisneta.

 Dizem que quando a família limpou o apartamento depois de vendido, no fundo de um gavetão atulhado de coisas foi achado um objeto estranho, bem embrulhado - um cinzeiro barato prateado, descascado,  com uma esmaecida inscrição dourada.                

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        (Do livro Faróis estrábicos na noite, Bertrand Brasil, Rio, 2009) 

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